Por Carmo Rodeia
Peço emprestado de novo o título deste entrelinhas a uma poetisa de eleição. Sophia de Mello Breyner no poema “As pessoas sensíveis” fala de que elas “não são capazes de matar galinhas/ porém são capazes de comer galinhas”.
Na passada semana o parlamento nacional chumbou, graças à maioria de esquerda, uma proposta de criminalização do abandono de idosos, apresentada em bloco pela direita. A mesma maioria que discutiu com um fervoroso empenho e inusitado denodo o aumento das penas relativamente aos maus-tratos aos animais.
Na altura, o parlamento aprovou projetos, do PS, do Bloco de Esquerda e do PAN, que fazem equivaler, na prática, a punição por maus-tratos a animais à punição por agressão física a uma pessoa “humana”. Este crime prevê até três anos de prisão, o mesmo que o PAN defendia para os maus-tratos a animais e ao qual o PS contrapôs “corajosamente” dois anos colocando condescendentemente as pessoas à frente dos animais: a pena máxima para os agressores dos animais ficou nos dois anos, para os agressores de pessoas manteve-se nos três. Mas todos rejeitaram a criminalização das pessoas que abandonem idosos.
A punição por si só não resolve nada. E o facto de criminalizarmos não quer dizer necessariamente que resolvemos. Roubar é crime e dá cadeia, no entanto continua-se a roubar…Mas não é isto que estou a defender; apenas constato o caminho que estamos a seguir: em ascensão está uma sociedade com dois pesos e duas medidas, em que a dignidade da pessoa é colocada em causa em detrimento de outros valores sejam relativos aos animais sejam relativos às coisas.
O Papa Francisco numa das suas alocuções dominicais e também na encíclica Laudato Si, onde nos coloca como administradores da “Casa Comum” põe tudo no devido lugar: “Quantas vezes vemos pessoas que cuidam de gatos e cães e depois deixam sem ajuda o vizinho que passa fome?”.
Mais de 40 mil idosos vivem sós, isolados ou vulneráveis, um número que segundo os dados mais recentes da GNR (deste ano já!) quadriplicou em cinco anos.
Os dados dos Censos Sénior recolhidos no mês de Abril de 2016 em todo o território nacional, apuraram que o número de idosos sinalizados nestas condições aumentou de 15.596, em 2011, para 43.322 este ano.
60% dos idosos sinalizados vivem sozinhos e 11% habitam isolados da comunidade. Ou seja, ao todo foram sinalizados 26 mil seniores a viver sozinhos. A GNR identificou que mais de 20% está em situação de vulnerabilidade fruto de limitações físicas e/ou psicológicas. São mais de 9600 pessoas. Estes valores aumentaram quase 10% em relação a 2015, quando havia menos 4106 idosos sinalizados.
Deve existir seguramente um infindável conjunto de explicações ao nível das ciências sociais para esta inversão de prioridades.
Termino como comecei. Com Sophia e com “As pessoas sensíveis”. Remata o poema: “Ó vendilhões do templo/ Ó construtores das grandes estátuas balofas e pesadas/ Ó cheios de devoção e de proveito/ Perdoais–lhes Senhor Porque eles sabem o que fazem”. Infelizmente para nós, “pessoas humanas”.