António Rego: 50 anos de sacerdócio a evangelizar através da palavra

Foi ordenado padre a 21 de junho de 1964, na Matriz de Ponta Delgada. Na primeira pessoa fala sobre o sacerdócio, a igreja e o mundo da comunicação.

Portal da Diocese (PD)- Comemora 50 anos de sacerdócio. Que balanço faz desta caminhada?

Cónego António Rego- É a chamada vida de balanço impossível. Faço um exame de consciência imperfeito, marcado pelos meus olhares sobre a vida, o sacerdócio, a entrega, as causas, e só sinto segurança entregando tudo nas mãos de Deus. Embora sentindo vir ao de cima o que não fiz, ou não fiz bem feito, fico sempre trespassado por um imenso hino de ação de graças. Deus nunca me faltou e ofereceu-me infindas oportunidades e meios de anunciar o seu Reino. Todos os dias o senti bater à minha porta. Pensando bem não tenho medo da morte mas das contas que me pedirá. Mas, em boa verdade, tenho de agradecer o muito que Deus me concedeu. Semeei de boa vontade. Ele que faça colheita e contas e vou continuar a semear.

Seja-me permitida uma nota que deveria ser de entrada e quase vai de rodapé. Apesar de já ter sido cumprimentado em muitas circunstâncias pelos cinquenta anos de sacerdócio, apenas hoje, 21 de Junho, se cumpre essa data. E tenho muito gosto em responder a tempo à entrevista que amavelmente me foi pedida. O dia é mesmo hoje 21 e a Ordenação aconteceu na Matriz de Ponta Delgada.

 

PD- De que forma a ilha o marcou, qual é o traço mais forte da sua memória de infância?

Cónego António Rego – A Ilha marcou tudo. Marcou a família, a Igreja de que estive próximo, a escola que frequentei. Mas a Ilha é uma espécie de batismo que não nos deixa o resto da vida, sejam quais forem os lugares de habitação e as hipóteses que possamos abraçar. A ilha é uma coisa muito séria. Define- nos o olhar, a escuta, o tato, o sabor, a palavra, a compreensão, a sensibilidade, a feitura da alegria e o afrontamento da dor. Dá-nos humildade e às vezes arrogância. Dá-nos capacidade de partilha e tons menores de isolamento. Todos os seres humanos têm um pouco de tudo isto. Mas como há raças, etnias, há tons diferentes de alma. E a Ilha trabalha esses tons. Depois parte-se. Partia para muito lugares sem bolsa nem alforge, mas com a marca da Ilha que vai dar tom a todas as proclamações de Evangelho, nomeadamente na minha área, a da comunicação. Saí muito cedo da Ilha mas nunca parti sem ela, também nos terrenos surpreendentes da evangelização.

 

PD- Ao longo desta caminhada viveu certamente dilemas e contradições. Alguma vez vacilou ou sentiu que este não era o seu caminho?

Cónego António Rego – Deus sabe que não. Nunca lhe pus a hipótese de O seguir por outro caminho. Vieram ventos e tempestades, vieram alegrias e muitos sonhos e projetos, mas nunca pensei virar o leme noutra direção. Também nunca andei sozinho. O Sacerdócio é um ato comunitário, como o foi o dos Apóstolos, dois a dois, em diálogo permanente com o Mestre como na Estrada de Emaús. Não pensei olhar para trás, nem tinha razões para isso. Tive muitos desafios, enfrentei muitas mudanças, andei pelas fronteiras de mentalidades e culturas, mas não me recordo de um momento em que me tenha arrependido do sim que dei ao convite que me foi feito.

 

PD- Passou-se meio século desde a sua ordenação. Ser padre hoje é muito diferente do que era no principio da vida sacerdotal, quer do ponto de vista do número de vocações, quer do ponto de vista social quer até mesmo individual, na perceção que o sacerdote tem do seu papel na sociedade. Sente isto? Como se pode transformar esta “crise”(?)numa oportunidade?

Cónego António Rego – A mudança. A fascinante e complexa mudança das idades, mentalidades, estilos, escolas, como um rio que corre, corre  sempre com água nova debaixo de cada ponte. O Deus admirável da história aliado ao homem foi reformulando a história. Eram épocas, idades, movimentos, eram espiritualidades, evolução teológica, moral, pastoral, antropológica. Ninguém foi testemunho de tudo. E se alguma coisa caracteriza o nosso tempo é uma mudança de época brusca que parece dispensar Deus e assustar os conservadores. É Ele que rasga e aponta o caminho e temos de ser capazes de, não digo compreender tudo, mas tudo procurar discernir, e descobrir o nosso lugar sem medo. Crise, novidade, aparente contradição, proclamação de novos valores, quebra de referências. É esse o nosso desafio: descobrir Deus neste labirinto e o seu projecto acerca da história de todos e de cada um de nós. A Igreja pode parecer demorada em dar algumas respostas. Mas,  trata-se talvez mais que uma resposta simplista, uma procura humilde. Penso que foi essa a proposta do Concílio há cinquenta anos, penso que é esse o desafio assumido pelo atual Papa, com o espírito bem fixo no projeto de Deus e os pés bem assentes na cidade dos homens, onde se passeiam todos os angustiados e os que foram irradiados do centro. Não há fórmulas acabadas de tudo resolver, mas uma disponibilidade nova do coração em discernir e avançar corajosamente. Seria longa uma resposta completa e perfeita. Mas foi por aqui que descobri e cumpri o aferidor que conduziu os meus passos na porção mínima da minha importância face ao projeto de Deus. Aqui me junto aos muitos companheiros de jornada, sacerdotes, religiosos e leigos que consagraram a vida à causa do Reino e no fim de tudo se sentem servos inúteis. Não me humilha nada essa definição. Pelo contrário.

 

PD- O padre hoje é chamado a ser cada vez mais um homem da palavra. Aliás, o Papa Francisco faz essa exortação lembrando que o Pastor é aquele que anuncia a palavra, mesmo que isso o afaste de outras tarefas. Como vê este “novo” papel?

Cónego António Rego -Quando dizemos a Palavra não a circundamos de esquemas, teorias, dogmas, códigos e artigos. A Palavra é mais longa e profunda. É o todo de Deus distribuído como o pão, vital complemento de cada celebração essencial da fé no mistério eucarístico. Mas é proclamada a uma multidão por vezes anónima que tem ao lado outras palavras, nos livros, revistas, jornais em papel ou digitais, que se atravessa e discute nas redes sociais, que se exprime nas notícias da rádio e da televisão, que se  envolve nos dramas do cinema e desce em cada casa num televisor que se multiplica às centenas, milhares, a gente atenta, distraída, crente ou indiferente. Como a semente que se semeia. Os media de hoje têm o feitiço da linguagem com alegorias, símbolos, grafismos, oráculos, numa profusão comunicativa quase estonteante. Mantendo a sua originalidade. A Palavra tem de andar sempre connosco entre as nossas palavras, como a grande ilustração do Verbo para os homens e mulheres do nosso tempo. Somos detentores e reveladores desse tesouro.

 

PD- Este apelo ao anuncio remete também para a questão da comunicação. Foi sempre um sacerdote ligado à comunicação. Como é que surgiu essa vocação?

Cónego António Rego – Muito naturalmente colada à vocação sacerdotal. Acho que se trata de uma peça única, pois o sacerdócio é comunicação, comunicação é aproximação. Aconteceu que, no meu caso, fui muito cedo enviado para os média – jornais, rádio e televisão, e a Igreja ao longo destes cinquenta anos foi-me pedindo que trabalhasse particularmente nessa área sempre ligado ao ministério sacerdotal. Perguntam-me muitas vezes como concilio a missão de padre com a de jornalista. Vou- me sempre lembrando de coisas novas mas na realidade são dois segmentos duma mesma missão. A comunicação tem muito a ver com a proclamação da Palavra, a celebração, a assembleia, a revelação da misericórdia de Deus. Segui o Concílio de perto e tentei traduzir os seus apelos e a forma de diálogo com o mundo contemporâneo. Olho e ouço o Papa Francisco e penso imediatamente num modelo perfeito de comunicação, com a proximidade das pessoas, a clareza da linguagem, a capacidade de falar a crentes e não crentes, a entrega generosa a todos e cada um a quem se dirige, a paixão de dizer Deus duma forma simples. Tudo isto para dizer que não inventei nenhuma nova fórmula. Fui aprendendo que é mesmo verdade que fomos enviados a anunciar o Reino sobre os telhados.

Scroll to Top