Pelo padre José Júlio Rocha
Lembro-me que o dia começou cinzento na Terceira e havia de terminar cinzento em São Miguel. Os dias cinzentos, na nossa terra, são um prenúncio de tristeza e saudade. Imprimem um selo de melancolia nos gestos e nos olhares, uma forma de viver a que já nos habituámos há séculos nos Açores. As nossas saudades, as sentidas e as cantadas, têm o sabor dos dias nublados.
Foi nesse dia nublado de outubro que, carregando uma mala castanha quase tão pesada como eu, e depois da primeira viagem de avião, dei entrada na portaria daquela mole imensa que era o Seminário do Santo Cristo, em Ponta Delgada. Para quem tinha vivido numa casa pequena, no recanto de uma canada de aldeia, aquele edifício era uma cidade inteira. Com cinco andares de altura e quase cem metros de comprimento, o gigante de cimento armado, imponente e frio, recebia, naquele outubro de 1981, 45 crianças e adolescentes que, do quinto ao nono ano, haviam de o habitar.
Esse primeiro dia, que era oito de outubro, ainda me está impresso na memória como se tivesse sido ontem. Tinha vivido os dias anteriores com o entusiasmo infantil de quem parte para uma aventura única. Sonhava de noite e pensava de dia em como seria viver num seminário, com rapazes de outros lugares e outras idades, com a ideia de que todos seriam certamente bons meninos, bem comportados, ao contrário dos colegas de escola até ali. Julgava que um seminarista era um santo, sem dizer palavrões, sem se irritar, extremamente correto no futebol, sempre atento nas aulas, imaculado nos estudos e na oração.
O primeiro murro no estômago foi a despedida da mãe, do pai, dos irmãos, dos avós, dos vizinhos e amigos, do cão do gato, de tudo o que conhecia. Estava a despedir-me de mim, de tudo o que eu fora até aí. Mesmo assim, a minha alma de 13 anos ainda tinha reservas para se entusiasmar com a primeira viagem de avião e a vida nova que se adivinhava. O crepúsculo desse dia ditou-me a dureza do que seriam os primeiros meses de seminário. Completamente só e sem conhecer ninguém, na enorme camarata que escurecia lentamente, naquele quarto piso com vista para a cidade a acinzentar, um aperto frio pelo peito adentro, um medo novo e escuro, o sentimento de ausência de todos os que me amavam. Onde me fui meter?
“Querida mãe, pai e irmãos”, comecei a escrever. Seria a primeira de muitas cartas a destilar saudades e notícias. Nesse entardecer, acabaria por deixar a infância para trás e entrar de cabeça na vida adulta a que as circunstâncias obrigavam. Depressa descobri que os seminaristas eram rapazes como os outros. As mesmas traquinices, os mesmos palavrões, as mesmas discussões no futebol.
O seminário ensina-nos a crescer, e não só na fé: ensina-nos a ser homenzinhos, responsáveis pela sua vida, obriga-nos a conviver muito de perto com os outros, a saber dialogar, porque outra hipótese não temos. E eu aprendi muito nesse tempo de crescimento.
Ainda hoje me perguntam se, aos 13 anos, eu já sabia se queria ser padre, se eu já tinha vocação. Apraz-me dizer que, aos 13 anos, ninguém sabe onde está, quem é nem para onde vai, pelo menos com a certeza de um adulto. Mas a vocação é um trilho com sinais de pista: cada sinal leva ao próximo e nós nunca sabemos o fim da caminhada. Isso a Deus pertence. A nós, cabe-nos confiar e seguir caminho.
Dei entrada no Seminário Maior de Angra a 1 de outubro de 1984. Aí, já adulto em idade, as coisas foram diferentes. Descobrir a vocação no companheirismo e na amizade foi uma aventura bem diferente. Foi nesta casa da Rua do Palácio que, aos vinte anos, depois de uma crise vocacional, descobri que estava no caminho certo. O eminente Caetano Tomás limpou-me as dúvidas quando me disse: “Jesus precisa de ti. A Igreja precisa de ti. A tua vocação é dizeres sim a quem precisa de ti.” Claro como água. A vocação é pensar primeiro no outro, é dar mais do que receber, é aprender a ter um espírito de doação, abertura e entrega. E tudo isso em nome de Deus.
Talvez então tenha compreendido porque é que os seminários estão cada vez mais vazios e os casamentos cada vez mais em crise. Pensar primeiro no outro – que é o primeiro passo do amor – é um exercício difícil, incómodo, duro. Hoje, todos os caminhos vão dar ao bem-estar, ao prazer e à realização pessoal do indivíduo. Passem meia hora a ver publicidade nos nossos canais generalistas e reparem se tudo não desemboca numa espécie de felicidade artificial, de realização imediata dos desejos e prazeres, de rápida satisfação do indivíduo, como se isso fosse o Santo Graal da realização humana.
Aqui há algum tempo, em Lisboa, passei pelas montras de uma seguradora e vi, lá dentro, um cartaz com uma mulher (todas as mulheres da publicidade são estranhamente lindas) empunhando um telemóvel e olhando-me nos olhos. O cartaz dizia: “Preciso de ir ao médico, mas não quero sair de casa. E agora?” Lá o cartaz explicava como ter uma consulta médica a mexer apenas com um dedo no telemóvel. A lei do menor esforço é um dos motores da criatividade humana. E um dos pilares da sua degenerescência.
Fez este mês de outubro 40 anos que entrei no Seminário Menor. Apesar dos momentos difíceis da caminhada, não me arrependo, nem por um minuto, das escolhas que fiz. Como aluno e professor, devo grande parte do que sou ao seminário, pelo que recebi e pelo que dei, pelo que vivi e pelo que ajudei a viver. Estamos a entrar na Semana dos Seminários. Era importante lançar a mensagem de que, no seminário, se aprende a dar mais do que a receber. E este, nos nossos dias, é um sinal de contradição.