Amar com uns olhos muito grandes

 

Foto: Igreja Açores

Pelo Padre José Júlio Rocha

Cem anos que eu viva não hei de esquecer aquele rosto crivado de rugas, por detrás de uns óculos convexos, desumanamente convexos, que lhe faziam os olhos maiores do que a cara.

Nós, os padres, sobretudo os mais novos, os que têm menos de dez anos de serviço, que ainda trazem o cheiro do seminário, de vez em quando levamos umas bofetadas de humildade que nos derrubam do cavalo. E é muito importante que isso aconteça para não ficarmos pelas lições do seminário, a pensar que sabemos muitas coisas de Nosso Senhor e do destino dos homens. Aconteceu-me muita vez e espero ter aprendido alguma coisa.

Andava eu ainda com tabaco no umbigo, três ou quatro anos de padre, numa das nossas paróquias, e a senhora Helena falou-me vagamente de uma velhinha, que morava na rua tal, número tal, que queria confessar-se.

A casa era baixa e roída pelo tempo, parecia abandonada, com limos na pintura e as portas e janelas a precisarem de arranjo. Ela abriu-me a porta e eu vi um vulto de metro e meio, na casa dos oitenta, aquelas rugas, aquelas faces caídas pelos lados do queixo, aqueles óculos, aqueles olhos aumentados, grandes, a perscrutar um mundo ausente. Quase cega. “Quem é o senhor?” “O senhor padre.” Começou a chorar.

Nascera numa das nossas freguesias rurais e, antes dos dez anos, morreu-lhe o pai. A mãe casou segunda vez. O padrasto começou por lhe fazer sorrisinhos, depois passou a tocar-lhe onde não devia e acabou por abusar dela sucessivamente, até que, aos treze anos, ela conseguiu fugir, ou melhor, migrar para a cidade, para casa de uma família de bem, que precisava de uma menina para servir. Não foi feliz. O patrão começou também com sorrisinhos, depois com toques onde não devia e acabou, outra vez, entre mimos, ofertas e juras de silêncio, por abusar dela, do seu silêncio, da sua posição de criada a dias, da sua pobreza, feminilidade, infância.

Aos dezassete anos saiu da casa dos patrões para casar. Desta vez o marido não lhe fazia sorrisinhos, não lhe tocava. Batia-lhe. Bebia e batia-lhe, batia-lhe e bebia. Proibiu-a de sair de casa sozinha, nem para a missa. Teve sete filhos, viu um morrer-lhe, aos quatro anos, nos braços.

Estranho, esse fenómeno da culpa. Ela queria confessar-se disso tudo, como se tudo fosse culpa dela, e era isso o que o padrasto dizia, o que o patrão dizia, o que o marido dizia, o que os filhos diziam. Ela era a pecadora. Ela não ia à missa e a vida, de tanto a tratar mal, incutiu-lhe a certeza de que era uma pecadora. Agora, já velha, já sem poder sair de casa, os filhos longe – só uma filha que a vem ver de vez em quando e compra a comida para casa – rezava oito terços por dia, e um deles pelo senhor padre da paróquia. Lembro-me, naquela altura, de ter pensado que todas as minhas orações, desde a liturgia das horas às outras rezas, não valiam uma Ave-Maria da sua boca de poucos dentes.

Confessou-se longamente e, no fim, eu disse-lhe que trazia Nosso Senhor comigo. Foi um momento estranho. Da sua boca saiu um brado baixinho, um suave “ai” prolongado. Ajoelhou-se diante de mim e abriu os braços e começou a chorar. Recebeu a comunhão entre lágrimas de uma dolorosa alegria e beijou-me as mãos várias vezes, deixando nelas a marca húmida dos seus lábios e ainda hoje não sei se o meu sacerdócio se deve mais ao óleo santo com que o Bispo me ungiu as mãos ou à baba de oitenta anos de sofrimento com que a velhinha mas abençoou.

O sétimo capítulo de São Lucas conta-nos a história de uma mulher arrependida que, em casa de Simão, o fariseu, à mesa, lavou, com as suas lágrimas, os pés de Jesus. Com aquele gesto despudorado toda a gente ficou incomodada. Menos Jesus. O fariseu escandalizou-se: como pode Jesus permitir que uma mulher de má fama faça uma cena destas com Ele? Mas o fariseu não lhe tinha dado água para lavar os pés, ela lavara-os com as lágrimas. Não lhe tinha dado um ósculo de saudação, ela não parava de lhe beijar os pés. Não lhe tinha posto óleo sobre a cabeça, ela ungira-lhe os pés com perfume. Por isso todos os seus pecados serão perdoados, porque muito amou. “Mas – diz Jesus – àquele a quem pouco se perdoa pouco ama…”

Esta frase misteriosa de Jesus fulmina-nos hoje, enquanto Igreja. Seremos nós os tais cristãos que, de tanto “convivermos” com Jesus, já quase nem damos por Ele? Teremos aquela “fé de sacristão” que quando passa pelo sacrário já nem se ajoelha porque já se ajoelhou muitas vezes? Tudo está bem estruturado, a Igreja é uma estrutura bem organizada, com o seu código, a sua moral, os seus dogmas, a sua casta hierárquica. Tudo bem. E o resto? Programamos a pastoral em reuniões que nunca acabam e inúmeras vezes a pastoral não vai além de reuniões sobre reuniões. Tudo bem. E o resto? Organizamos um movimento sinodal inédito, pensar a Igreja em caminho, ouvir a Igreja. Tudo bem. E o resto? Andamos a discutir e a puxar as barbas uns aos outros porque uns querem a missa em latim e outros a integração dos homossexuais e dos recasados. Tudo mais ou menos. Mas onde é que está Jesus no meio disto tudo? Dos lábios para fora? Talvez não passemos de fariseus, que vão ao templo sentir-se mais dignos do que os outros e, de vez em quando, batemos no peito a fingir que somos publicanos arrependidos. Gastamos a esmagadora maioria do nosso tempo em papeladas, reuniões, contas, sermões, ritos e rituais, mas o que é que sentimos quando, na missa, dizemos “Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada…”?

Alguém perguntou a um bispo quem era Jesus para ele. Resposta: “O Filho de Deus que encarnou e morreu para nos salvar.” Esse alguém perguntou o mesmo a um transeunte. Resposta: “Fomos muito amigos, falávamos todos os dias. A minha vida dependia dele. Mas a vida começou a correr mal e fui por outros caminhos. Mas tenho tantas saudades que já programei o reencontro.”

Que resposta escolhias para ti, cristão?

*Este texto foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.

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