Ali vão eles

Por António Pedro Costa

Foto: Igreja Açores

Todos os anos, a ilha de São Miguel, pela ocasião da Quaresma, transforma-se num palco de fé e devoção, onde grupos percorrem todos os seus caminhos, atravessando montes e vales, enfrentando as intempéries do inverno, mas sempre guiados por uma força maior. As romarias quaresmais são mais do que uma tradição secular, elas são um testemunho vivo da profunda espiritualidade dos micaelenses.

Ao longo de uma semana, os romeiros avançam com passos firmes, cumprindo promessas e renovando a sua fé. O vento cortante, a chuva incessante e o frio agreste não os detêm. Pelo contrário, fortalecem-nos, tornando cada oração mais sentida, cada gesto de partilha mais genuíno. No silêncio dos caminhos secundários e atalhos esquecidos, ouvem-se as preces murmuradas em uníssono, ecoando como um canto de esperança e entrega.

A cada ano que passa, o espírito destas romarias resiste e renova-se, reafirmando a identidade de um povo que, apesar das agruras do tempo e da vida, continua a encontrar na fé e na partilha a verdadeira essência do seu caminho, revelando-se a alma grande dos micaelenses, como uma alma imensa, do tamanho do céu.

Há registos, desde a idade média, de que todos os anos grupos compostos só por homens, provenientes de muitas freguesias, vilas, cidades caminham por atalhos e caminhos secundários menos movimentados, orando à volta da ilha, cumprindo promessas, por montes e vales, arrostando vento, frio e copiosas chuvas intempestivas, durante uma longa semana invernosa, mas cheia de calor humano, partilha e grande generosidade e cordialidade.

O espírito das romarias soa sempre mais forte e os micaelenses mostram a sua fé no Senhor Santo Cristo e no Divino Espírito Santo, pedindo a intercessão contínua de Maria, a Mãe de Jesus, entoando a típicas avé-marias dos romeiros, em cada igreja ou ermida que encontram, o que tocam fundo na alma, não apenas dos romeiros que a cantam, mas do povo que os escutam com tanta reverência.

Esta religiosidade popular estendeu-se por algumas ilhas dos Açores, como S. Jorge, Terceira e Graciosa e até de Toronto, no Canadá, com ranchos da nossa comunidade lá residente, e é uma incontornável marca da nossa identidade açoriana.

Em S. Miguel, este tempo assume particularidades ancestrais e intrinsecamente possui uma mística difícil de explicar, ao ponto de quem vai um ano, quer ir sempre mais e mais. Conheço até quem não possa, por circunstâncias várias, ir de romeiro num determinado ano e fica pesaroso por ficar atrás, mas faz a romaria em espírito, pois sabe em pensamento e em qualquer hora do dia por onde anda o rancho e muitas vezes vai ao seu encontro.

Estes homens carregam consigo apenas um saco com o essencial e vão pernoitando em casas de famílias que os acolhem, ou em salões de igrejas e instituições que se oferecem para receber os romeiros. A religiosidade do povo açoriano traduz-se também nestas manifestações de fé, quer seja no cumprimento de promessas, quer seja para agradecimento de graças recebidas.

Na casa em que são acolhidos, é hábito os Romeiros lavarem os pés doridos- aproximando-se do ritual religioso da Última Ceia de Jesus, sendo servido um jantar, onde todos comem como irmãos. É de facto uma marca da nossa tradição que se funde com a nossa maneira de ser e de estar de ilhéus. Por isso, temos que respeitar este tipo de religiosidade popular.

Já nos acostumamos a vê-los passar com um bordão de madeira na mão e trajam hábitos tradicionais, carregados de simbolismo que muitos não conhecem o seu significado.

As Romarias ou como antigamente eram conhecidas as “Visitas às Casas de Nossa Senhora” é uma prática que não se sabe ao certo como começaram. Presume-se que tenham como causa as calamidades resultantes do terramoto de 1522 que soterrou Vila Franca do Campo, ou mesmo a peste de 1523/31 que assolou a ilha, mas com segurança ainda nada se sabe.

Trata-se para uns de um legado cultural, que apenas integram a dimensão religiosa na história da nossa terra. Contudo, para o nosso povo, esta prática não é mais do que uma transmissão de fé dos nossos antepassados, que em momentos de aflição suplicavam a interceção de Nossa Senhora junto do Pai, pedindo a proteção do céu. Esperamos que a sua genuinidade não se perca e continue a ser uma marca de religiosidade do nosso povo.

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