Afinal, Pilatos não morreu e continua ateu

Por Carmo Rodeia

O julgamento de Jesus é um episódio que interessa a todos, já que, como nenhum outro, interroga a consciência humana e fez (ainda hoje faz!) sentir as suas consequências no curso da civilização ocidental. A ideia não é minha mas de Joseph Weiler, um eminente professor de Direito que esteve em Portugal em 2016 para uma conferência na Faculdade de Direito, onde foi escutado por mais de mil pessoas.

Não importa a conferência o que importa é o julgamento. Naquela manhã em que se encontrou com aquele profeta acusado, Pilatos estava ocupado a julgar outros casos, como o demonstra o facto de dois salteadores serem crucificados com Jesus e a amnistia que é concedida a um agitador de nome Barrabás.

O desfecho do julgamento de Jesus é o que se conhece, com particular destaque para o caminho entre o pretório e o local da execução. A multidão aglomera-se e exorta ao escárnio de Jesus. Todos sabemos o que acontece. E porque acontece: Jesus é um revolucionário, que afronta o satus quo e põe em causa as estruturas de poder anunciando um reino onde o Amor é o mais poderoso mandamento. Como sempre, quem se sente ameaçado e questionado, tem medo da sua própria sombra quanto mais de alguém que ameaça o seu poder. Tal afronta só podia ser impedida retirando-o de cena e entregando-o à justiça dos homens. Invocando Deus e em nome de alegadas heresias, entregaram-no a Pilatos, como se de um criminoso se tratasse. Pilatos lavou as mãos, mesmo sabendo que aquela condenação era uma infâmia. Mas era preferível acalmar as hostes e fazer-lhes a sua vontade.

Os talibã regressaram ao poder no Afeganistão. 20 anos depois de combates, de tensões, de muitas mortes locais e estrangeiras, do maior e mais simbólico ataque aos valores ocidentais perpetrado contra as torres gémeas em Nova Iorque por um bando de terroristas, acolitados pelos “estudantes” de Teologia, os maiores e mais inveterados defensores da sharia estão no comando em Cabul.

Olhando para a história recente não é difícil de antever o que vai ser a vida no Afeganistão: o regresso a um estado confessional, onde impere a sharia, com a retoma de práticas de justiça medieval, como a amputação de membros como forma de punição de alguns crimes, do roubo ao adultério; a limitação do acesso à educação e instrução por parte das mulheres, que são coisificadas; a limitação do direito à informação ou da liberdade de opinião.

Dizem os especialistas, insuspeitos, que foi um plano muito bem gizado do ponto de vista militar e aquilo que poderia ter sido um banho de sangue ficou-se “apenas”(?) por um rasto de destroços amargos sobretudo para as populações mais afastadas da metrópole, que ou foram dizimadas, ou tiveram de fugir, ou tiveram de se aguentar com toda a violência dos talibã, com casamentos forçados, perseguições e detenções arbitrárias. Tudo justificado em nome de Deus. Ontem todas as cadeias mostravam os vitoriosos a gritar “Alá é grande”.

As imagens que nos têm chegado revelam bem o sentimento experimentado por tantos e tantas afegãs que preferem passar os filhos por arames farpados ou colocá-los numa qualquer asa de helicóptero, na esperança de uma fuga bem sucedida em vez de esperar pelo conforto dos que se acham interpretes e defensores de Deus. Estranho…

O Presidente que assinou o acordo de retirada das tropas internacionais de solo afegão foi o primeiro a sair, entregando o país aos extremistas. Segundo ele para evitar um banho de sangue. A começar pelo seu, certamente.

Os Estados Unidos da América, que conceberam e patrocinaram o acordo de saída, assobiam para o lado preocupados, e bem, com a segurança do pessoal diplomático. Então e o resto do povo, sobretudo os afegãos, que foram a justificação para os EUA permanecerem no país durante 20 anos? Ou havia outros interesses que deixaram de fazer sentido?

“As tropas americanas não podem e não devem lutar numa guerra e morrer numa guerra que as forças afegãs não estão dispostas a lutar por si próprias”, disse Joe Biden, reagindo às críticas da opinião pública mundial.

Aos talibã deixou também um recado: qualquer ataque durante o processo de evacuação terá uma “resposta rápida e poderosa”, com “força devastadora, se necessário”.

Casa roubada trancas à porta. É a geo-política dirão alguns.

Pilatos, no tempo de Jesus, não teria feito melhor. Como não fez…

Quem quer que se preste ao seu papel, personificando a sua pessoa, continuará a ser sempre ateu…

Ninguém, em nome de Deus , pode permitir a barbárie ou ações que ponham em causa a dignidade humana. Independentemente de ser cristão, judeu ou muçulmano. Desculpem lá…

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