Afeto com sabor a paixão

O Quarto Evangelho é o mais concreto do Novo Testamento. O programa encontra-se em 1:14: «O Verbo transformou-se em carne.» Cada pormenor tem uma explicação humana dentro da obra.

Nas bodas de Caná (Jo 2:1-11) sabemos que, em última análise, Jesus é o «noivo» da Nova Aliança, o qual, até desaparecer o «vinho inferior», esconde «o belo vinho» (τὸν καλὸν οἶνον, v. 10). Mas: Quais são os noivos históricos dessas bodas?

Perante a pressão da mãe para resolver a questão da falta de vinho, para o brinde nupcial da paixão, Jesus diz: «Ainda não chegou a minha hora.» (ὥρα, v. 4) Essa «hora» remete-nos para a «hora» de uma outra paixão, em que Jesus, sentado na cátedra de pedra de Pilatos, é apresentado como «rei» (19:14).

Nesses momentos cruciais, acompanham-no três pessoas: sua mãe, o discípulo que ele amava, Maria Madalena e Maria, sua tia e esposa de Cléofas. São três pessoas cujas vidas foram decisivamente marcadas por Jesus: com a sua mãe teve uma relação umbilical, desde a encarnação até à morte; com o «discípulo» teve uma especial relação de amor; curou de uma grave doença Madalena (Mc 16:9; Lc 8:2), ela que velou pelo seu corpo após a crucifixão (Jo 20:1-18).

O casal de Maria e Cléofas, parece ser, dentro do Evangelho, o par de noivos cujo casamento foi «salvo» por Jesus. Desta forma se explica a sua presença junto à cruz, assim como o facto de a mãe de Jesus não ter sido convidada, mas de já «estar lá», envolvida na organização do evento (v. 1).

Jesus mandou encher de «água» as talhas de pedra. E ordenou: «Tirai agora.» (v. 8) O mestre-sala provou a «água transformada em vinho», mas o que os serventes tiraram das talhas foi… «água» (v. 9). De facto, aquele líquido não deixou de ser a «água» que entrou nas talhas, mas ganhou um novo sabor, o de um «belo vinho».

Desde o «afecto maternal e conjugal» à «sabedoria divina» (Pr 5:15), a «água» simboliza, na literatura vetero-testamentária, a saciedade física, afetiva, intelectual e espiritual do ser humano, tal como representado nos encontros junto aos poços; refiram-se os casos de Moisés e Séfora (Ex 2:15-21), Jesus e a samaritana (Jo 4:1-42).

As seis talhas de pedra representam a vida do leitor, vazia e imperfeita (assim o diz o simbolismo do número «6»). Sob a supervisão da mãe de Jesus, ele manda enchê-las do produto do esforço humano. E muda-lhe depois o sabor, para que esse labor humano, transmutado em sabedoria divina, inebrie de plenitude.

 

Ricardo Tavares, In A Crença, 07.11.2014

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