“Diálogos contra a Maré” permitiram confronto entre fé e ciência, outra forma de dizer liberdade e determinismo. Iniciativa é da Biblioteca de Angra, numa parceria com o Seminário Episcopal
O primeiro de três encontros da série “Diálogos contra a Maré” realizou-se esta noite na Biblioteca Publica e Arquivo Regional Luís Silva Rebelo, em Angra do Heroísmo, colocando em confronto o determinismo da ciência e a liberdade da fé para discutir o lugar de Deus na vida dos homens de hoje.
Nuno Lobo Antunes, neuropediatra e ateu confesso, embora tenha tido uma formação cristã, considera que é difícil chegar a Deus através da razão. Ainda assim, podem existir “interseções entre o estudo do cérebro e as questões teológicas”.
“Podemos encontrar pontos de contacto e as neurociências poderão indicar quais as zonas do cérebro que são ativadas com as experiências místicas, mas dificilmente conseguiremos chegar a Deus através da razão” diz o médico e investigador.
“A ciência tem, a pouco e pouco, tirado do caminho da explicação tudo o que é do sobrenatural”.
“O Deus do Antigo Testamento, obra notável, foi desfeito pelas ciências. O Novo Testamento, que implica uma moral e uma ética maravilhosas, levanta o problema do criador e a ciência utiliza uma técnica de abordagem ao problema da terra que não é aplicável ao sobrenatural”, referiu por vídeo conferência.
“Da mesma maneira que não se deve pregar um prego com uma chave de parafusos também não acho que o estudo da anatomia do sistema nervoso vá encontrar Deus” esclarece sublinhando que “são olhares distintos os da fé e os da razão” e, para si , é “difícil chegar a Deus por qualquer algoritmo. O encontro com Deus e com a transcendência da existência, tão importante no humano, não se cruzam” referiu.
“A única solução para a fé é a carroceira pois a fé é a crença daquilo que não pode ser provado; é uma dádiva de Deus que atribui essa possibilidade a cada pessoa que crê sem ver, ao contrário de Tomé”.
“Essa fé de acreditar não vem do determinismo do laboratório , pois o caminho da revelação não passa nem pelo laboratório nem pela ciência”, concluiu o neuropediatra.
Este encontro, que tinha como prioridade fundamental “esclarecer pessoas” é uma iniciativa da Biblioteca e do Seminário de Angra, tendo como moderador critico o professor de teologia Moral e Doutrina Social da Igreja, padre José Júlio Rocha.
“Sabemos que a fé e a ciência são duas asas do mesmo pássaro, dois caminhos que se fazem, que se respeitam e não se anulam, mas que muitas vezes tentaram, ao longo da história impor-se um ao outro, como sabemos”, avançou o sacerdote ao Sítio Igreja Açores.
“Todo este encontro foi bastante valioso para abrirmos a mente e percebemos motivações da fé e da ciência e sabermos que lugar ocupa Deus numa sociedade cada vez mais virada para a ciência, para o conhecimento cientifico e para a técnica” avançou ainda o sacerdote que além de ter dialogo com Nuno lobo Antunes teve ao seu lado outro médico, Luís Cabral.
A partir de três livros, o médico anestesiologista, colocou o acento tónico numa espécie de endeusamento do homem, a da sua propensão a imitar Deus, aproveitando-se do conhecimento cientifico.
“Enquanto humanidade estamos a deixar de ser uma espécie para passarmos a ser uma espécie diferente: um `homo-Deus´; através da ciência e do desenvolvimento tecnológico temos como objetivo aspirar a Deus”.
“Hoje há uma clara valorização da ciência através da qual o homem tenta ser mais próximo de Deus”, adverte.
“A principal reflexão é que não há incompatibilidade entre fé e ciência; não devem sequer entrar em contradição. É isso, de resto, que nos ensina a Igreja acatólica: se nós buscamos a verdade e se a ciência busca a verdade vamos encontrar Deus” afirma.
“O rigor leva-nos sempre a Deus” reafirma salientando que “humanismo associado a estas duas vertentes transformam a humanidade de forma fraterna”.
Sublinhando a fé “como um dom”, o clinico ressalva que este dom, que é oferecido, deve servir para avançar.
Para o Diretor da Biblioteca, José Avelino Santos, “foi uma iniciativa que teve por base um diálogo e interpelar com questões e duvidas porque nós vivemos com dúvidas e são as dúvidas que nos fazem crescer e evoluir”.
“Esperamos que esta tertúlia de ideias seja frutífera”, concluiu.
Carlos Correia, também da Biblioteca, acrescentou que este momento procurou “uma reflexão, face a face, sem filtros que bebesse de um contributo de índole humanista”.
“A ciência é fruto da razão mas não há fé que não seja razoável” afirmou apontando para questões de fundo como a Inteligência Artificial, a sua manipulação, o seu financiamento e ainda o seu uso.
Estes “Diálogos contra a Maré” que terão mais duas edições este ano- “Fé e Literatura” e “Religião e Ciência”- visam novas abordagens a temas atuais e que constituem um verdadeiro desafio quer para a religião quer para a ciência.