Por Carmo Rodeia
“Solo sé que ahora mismo no quiero trabajar, quiero estudiar”, dice Roja, de 12 años, que ha sido rescatado de pasar 12 horas diarias en un cuarto fabricando brazaletes en la India, sin recibir nada a cambio. Como él, 160 millones de menores de edad trabajan en todo el mundo”. Assim começava o corpo de uma reportagem, intitulada “Viaje al infierno del trabajo infantil”, publicada pelo jornal espanhol El Pais, no dia 13 de novembro deste ano.
A reportagem assenta no testemunho de três crianças, sim crianças, que falam desse drama global que é o trabalho infantil e que se agravou com a pandemia.
Esta é uma daquelas histórias que como dizia Joaquim Fidalgo no SeteMargens nos dá um murro no estômago. Nem queremos ouvir pela segunda vez, mas eu repito: com vergonha mas com uma vontade imensa de o gritar bem alto- 160 milhões de crianças serão abusadas todos os dias, através de uma exploração infame que há de ser ditada espero eu, para conseguir encontrar uma justificação que me permita mitigar a dor, como mulher, mãe e cidadã, de ver até onde pode ir a indignidade humana. E, é preciso deixar uma nota: os 160 milhões são dados oficiais. Fora todas as outras que escapam à malha dos números oficiais.
Adianta o jornal que na contabilidade oficial 97 milhões são rapazes; 63 milhões são raparigas, maioritariamente da Ásia, América Latina e África. Trabalham em minas, fábricas, campos, mercados, ou até na sua própria casa, o que por si já é um contrasenso, já que uma casa, um lar, seria abrigo protector e não explorador.
E, prossegue o jornal:“Ahí están: barren las calles, venden helados, cargan fardos, cuidan el ganado, lavan la ropa o la cosen, buscan oro, cocinan…”, longe dos nossos olhos e dos nossos corações, mas bem próximos das catedrais de consumo onde, por estes dias, todos nós acorremos em busca de um presente que não nos faz falta nenhuma nem tão pouco a quem certamente o vamos oferecer.
No ano passado a ONU mandava cá para fora outro número absolutamente escandaloso: diariamente, cerca de 25 crianças são todos os dias recrutadas e obrigadas a combater em conflitos armados por esse mundo fora.
O último artigo deste trabalho do El Pais foi publicado a 20 de novembro e é um trabalho exaustivo sobre a exploração de crianças que ou por extrema necessidade das famílias ou pura e simplesmente porque são obrigadas por terceiros entram nas malhas do trabalho infantil sem quaisquer direitos ou remunerações; apenas com um objetivo: a sobrevivência; a sua e, muitas vezes, a dos seus familiares.
As consequências do trabalho infantil na vida de crianças e adolescentes são inúmeras, como todos sabemos. Não falo sequer das consequências de reproduzir o ciclo de pobreza da família, do que prejudica a aprendizagem da criança e a torna vulnerável em diversos aspectos, incluindo a saúde, exposição à violência, assédio sexual, esforços físicos intensos; falo, sobretudo, no impacto que a ausência da vivência da plena infância pode causar no desenvolvimento físico, cognitivo, emocional e social das crianças, com implicações diretas na construção de uma vida adulta, se é que lá chegam. Não sou especialista nestas questões mas não é difícil de perceber, e intuir, que o que acontece nesta etapa da vida, gera traumas irreversíveis. Dirão alguns: estarás a fazer uma leitura com olhos de uma europeia, do chamado primeiro mundo, onde o trabalho infantil existirá mas nunca aparece nas estatísticas mais escandalosas, embora seja igualmente escandaloso. Dirão outros que o trabalho de crianças tem de ser contextualizado na cultura e na sociedade onde se desenvolve. Pois sim!
A história das três crianças que servem de base à reportagem do El Pais- Mónica, de 12 anos, que vende gelados na Bolívia; o Roja de 12 anos que trabalhou até há pouco tempo, na Índia, a colar peças decorativas em pulseiras e a Amina, de 13 anos, que trabalha numa mina de ouro clandestina nos Camarões- é apenas a história de três crianças vítimas de abuso infantil, ou de maus-tratos. Tudo está mal: da família ao empregador, ao estado, a todas as instituições que deveriam permitir a estas e a mais 159 milhões 997 mil crianças, e a todas as outras que são abusadas ou negligenciadas e que não integram as estatísticas, uma vida digna em que fosse respeitado tão só e apenas o seu direito a serem crianças.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) define “abuso infantil” e “maus-tratos infantis” como “todas as formas de maus-tratos físicos e/ou emocionais, abuso sexual, negligência ou tratamento negligente, comercial ou outro tipo de exploração, resultando em dano real ou potencial à saúde, sobrevivência, desenvolvimento ou dignidade da criança no contexto de uma relação de responsabilidade, confiança ou poder. ” A OMS também afirma: “A violência contra crianças inclui todas as formas de violência contra menores de 18 anos, perpetrada por pais ou outros responsáveis, colegas, parceiros românticos ou pessoas desconhecidas.
Curiosamente, não tenho visto grandes trabalhos de investigação/reportagem jornalística sobre estes abusos. No mundo inteiro e em Portugal. Quando os abusos estão na ordem do dia, e bem. Hoje e no passado. Mais estranho é o facto de até haver pretexto, como se fosse necessário. Este ano há uma efeméride em celebração: o ano da luta contra a eliminação do trabalho infantil.