“A palavra de Deus não é um catálogo do que temos para fazer”

José Carvalho, doutor em Teologia Bíblica, é um dos oradores convidados pela XX Semana Bíblica Diocesana dos Açores

Em entrevista ao Sítio igreja Açores o docente da Universidade Católica do Porto sublinha a importância da família no contexto da evangelização mas destaca a necessidade de se reaprender a ler a Sagrada Escritura. Só um encontro pessoal com Deus pode permitir a compreensão e descodificação desta palavra.

 

 

Sítio Igreja Açores- O Concilio Vaticano II recolocou a Bíblia no centro da teologia e do agir cristão. Estamos no caminho certo ou esse aprofundamento que se impunha  ainda tarda em ser feito?

José Carvalho- Não é fácil responder… houve muita coisa que já foi feita mas falta fazer muito.  O Vaticano II deu o método mas não deu um cardápio, nem nenhum menu ou rota a seguir. Houve uma reabilitação da Sagrada Escritura, que voltou a ser considerada como a alma da teologia, não apenas do ponto de vista da palavra escrita, mas naquela que é a tradição da igreja: uma sinfonia das palavras. E isso teve consequências na liturgia e na forma como as comunidades estudam a palavra escrita, a interpretam e a descodificam, mesmo no sentido do confronto com outras palavras.

 

Sítio Igreja Açores- Os cristãos têm um conhecimento profundo e amplo do significado dessa palavra?

José Carvalho- É difícil responder assim de repente a essa questão. Numa resposta só, eu diria que ainda não. Houve muito trabalho já feito mas ainda temos muito trabalho para fazer e, esse cabe a cada um de nós batizados. Estes encontros, como a Semana Biblica que está a decorrer em Ponta Delgada, é um meio importante para se dar mais um passo. Não apenas para ler mas sobretudo para interpretar…

 

Sítio Igreja Açores- As religiões do livro são muito atreitas a uma interpretação literal da palavra. Que perigos é que isso comporta?

José Carvalho- Desde logo o fundamentalismo e há grupos dentro da igreja que o são, não há que ter medo em reconhecer, embora o fundamentalismo na igreja não dependa apenas de uma interpretação literal. O Cristianismo tem uma palavra escrita e do ponto de vista dogmático a Igreja por exemplo nunca se pronunciou sobre o facto da palavra escrita ter a suficiência material da revelação. O tema foi debatido desde Trento e ainda não se chegou a nenhuma conclusão. Eu digo, com Karl Ranher que não tem. O Cristianismo não é, de resto,  uma religião do livro, è tendencialmente uma religião assente na confiança e na experiência que resulta de um encontro pessoal que nos excede; é a religião dos encontrados… os que são encontrados pela graça de um Deus que se dá a conhecer. Tem um livro com uma palavra que ajuda a compreender mas que não é suficiente e, por isso, é importante que haja uma palavra onde todos se revejam e em que todos creem. Agora, as religiões do livro têm muita tendência para o fundamentalismo. É assim no Judeísmo e também no Islão, que nunca passou por uma interpretação. Eles continuam na idade média…

 

Sítio Igreja Açores- O que é que isso quer dizer?

José Carvalho- Não fazem interpretação e os que a tentam são pura e simplesmente banidos. O Islão nunca passou pelo iluminismo e por isso não sabe o que é a crítica da razão. Naturalmente que este confronto com a razão que o catolicismo teve foi doloroso mas também foi muito gratificante. Aliás, o Concilio Vaticano II recebeu esse legado que se traduziu numa série de reformas.

 

Sítio Igreja Açores- Esse desafio proposto pelo Concílio está a ser aprofundado?

José Carvalho- Estamos a evoluir o que não quer dizer que não existam dificuldades para fazer chegar as investigações de ponta à catequese, à homilética, à hierarquia, tornando-a acessível às comunidades sempre com uma enorme pedagogia.

 

Sítio Igreja Açores- De onde é que vêm as dificuldades e as resistências?

José Carvalho- Não diria resistência. O que há é dificuldades em fazer passar uma linguagem muito técnica às comunidades. Agora, é preciso sublinhar que a exegese católica é das mais avançadas…

 

Sítio Igreja Açores- Quer concretizar melhor….

José Carvalho- Por vezes são os investigadores católicos que vão mais longe na interpretação, na descodificação e no aprofundamento dos estudos bíblicos confrontando-se entre si. Desse ponto de vista, aquilo que começou por ser uma dificuldade no diálogo com a cultura, com ruturas no século XIX, está completamente superado. O dilema hoje, na tradição católica, é reencontrar leituras que são renitentes à aplicação dos métodos históricos críticos.

 

Sítio Igreja Açores- O papa Francisco apela muito ao regresso ao Evangelho. Mas temos de o saber ler, porque apesar de ser uma palavra humana é contextualizada e, hoje, o contexto é diferente. Como é que se dá este salto?

José Carvalho- Por vezes há contextos e imagens que é preciso traduzir. Esse trabalho é feito a nível superior não só na tradução mas também na contextualização e interpretação da palavra. Julgo que a formação daqueles que têm a competência de comentar e anunciar o evangelho tem em conta essa necessidade. As metáforas são a melhor forma de comunicarmos algo que nos transcende e as metáforas fazem parte da vida. As que estão na Sagrada Escritura são as metáforas da época. Nós hoje teremos outras e exige-se a quem lê, proclama e comenta o cuidado da preparação para não se cair na tentação, que é frequente, de um discurso moralista.

A palavra de Deus tem consequências éticas e tem um alcance moral mas,  acima de tudo, é uma palavra que nos atira para algo que nos falta e não um catálogo do que temos para fazer ou que fazer . Nós temos de conhecer a palavra, domesticá-la para que ela nos domestique a nós. Se nós partimos para o texto pensando que já o conhecemos e que já o ouvimos já não vamos ver nada nele e não conseguiremos transmitir o que quer que seja aos outros.

 

Sítio Igreja Açores- È preciso reaprender a ler o Evangelho?

José Carvalho Sem dúvida… por isso é que a Conferência Episcopal pediu para ser feita uma nova tradução da Escritura a partir dos originais, o que é feito de 50 em 50 anos, procurando atualizar a linguagem e ser o mais fiel a essa palavra, que será utilizada não como um gramofone mas como uma palavra que é minha e que quer que eu busque caminhos para a continuar a reescrever. A palavra de Deus não acabou… o Novo testamento ainda não está escrito…

 

Sítio Igreja Açores- O testemunho, portanto….

José Carvalho- Sim. Conhecer o verbo e agir de acordo com ele…

 

Sítio Igreja Açores- Qual é o grande desafio que se coloca hoje ao estudo bíblico?

José Carvalho- Julgo que, para a Igreja, é continuar a preparar professores em escolas de jeito. Não é só escolher quem se manda (isto é para os senhores bispos) mas escolher para que escola se manda estudar, porque não é tudo a mesma coisa. Depois, é um trabalho infindável… que nunca para, pois há sempre uma novidade para interpretar, não uma liberdade para dizer o que me apetece ou quero mas para aprofundar porque, em cada tempo, a palavra é um tesouro de onde posso tirar coisas novas, embora eu não possa tirar tudo o que quero. Isso é trabalho para os fundamentalistas e para as seitas. Mas, não é interpretação e sim perversão do texto. O que é necessário é  um trabalho permanente de encontro com o texto. A dificuldade é que nem sempre há gente suficiente para fazer tudo porque o mistério de Deus ultrapassa-nos e quando não é assim, é porque falhou alguma coisa.

 

Sítio Igreja Açores- Esta semana bíblica parte da Bíblia como o Evangelho da Família. Como é que podemos fazer isso que aparentemente é tão simples mas que na prática se revela tão difícil?

José Carvalho- Desde logo é preciso ter empatia. Se antes não nos tivermos convertido, não tivermos essa experiência prévia de encontro pessoal com Jesus, seja no silêncio seja na oração, a Sagrada Escritura  é uma maçada e os sacramentos são um teatro que eu não compreendo. Há um trabalho que é descodificar nos dias de hoje como podemos transmitir a fé, quais são os lugares, como questionou Bento XVI. Ora, eu penso que esse lugar é este encontro pessoal. Passando isto para as famílias é preciso que, em conjunto, elas descubram esta alegria do evangelho que foi experimentada primeiro por cada um dos elementos da família. Depois há as estratégias. Por exemplo a Diocese do Porto vai propor um trabalho que vai do Advento á epifania com propostas concretas em que as famílias são convidadas a lerem semanalmente um trecho do Evangelho, são confrontadas com as figuras bíblicas do presépio, no sentido que a palavra as inspire, que as salve, que as tire da distração. Existem propostas, agora é preciso que eu individual ou familiarmente esteja disponível para as acolher.

De nada servem reuniões, estruturas se nós não estivermos sensibilizados e motivados para acolher essa palavra….

 

Sítio Igreja Açores- Mas a estrutura também tem responsabilidades neste estado de coisas porque numa atitude do que foi o passado continua a servir o mesmo “pacote” que satisfaz em parte a generalidade de quem recorre à igreja, sobretudo a uma igreja ritualizada…

José Carvalho- Em parte concordo. A igreja oferece o “pacote” mas tem de se perguntar se ele ainda se adequa ou se é um esquema em comboio, onde alguém que não entre o perde. Dito de outra maneira, a pastoral familiar precisa de ser refeita e repensada por forma a ir ao encontro de uma nova realidade. É preciso rever o pacote e adequá-lo ao ritmo da vida de hoje, sem abdicar daquilo que é essencial. A família tem de ser uma presença no mundo, pelo simples facto de estar…enquanto tal… o casal, os filhos, numa constante atitude de fidelidade. Isso exige também um outro acompanhamento. Portanto, o que é preciso é adequar o “pacote” para continuar a usar a metáfora. A família é uma boa novidade para o mundo. A igreja tem de continuar a defende-la, como Deus quis que o seu filho tivesse uma família. Portanto a adequação do tal pacote passa mais por compreender a família e não lhe retirar tempo sobrecarregando-a com outras coisas. Só o facto de termos tempo para os filhos, para o casal já é anunciar e praticar o evangelho.

 

Sítio Igreja Açores- Que ensinamentos deixa Jesus à família?

José Carvalho– A mensagem dele é atual. Ele chama à fidelidade, porque no tempo dele também havia famílias e famílias e ele contempla-as, mesmo aquelas que parece que não encaixam nos cânones.

 

Sítio Igreja Açores- A Igreja está preparada para seguir esses ensinamentos de Jesus?

José Carvalho- Uns estarão outros não… O processo familiar de consulta e de participação proposto pelo Sínodo foi muito bom e é irreversível mas agora há questões doutrinais que não foram discutidas e que precisam de ser analisadas. Mais importante que o relatório sinodal é, quanto a mim, o texto do Cardeal Kasper. Há um trabalho de maturação a fazer mas infelizmente nem todos estarão preparados para o fazer. Vamos ver…

 

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