A Paixão segundo os nossos dias

Pelo padre José Júlio Rocha

Não gosto de ver animais a sofrer. E isto apenas quer dizer uma coisa, independentemente de quaisquer ilações: eu gosto e sempre gostei de animais. É por isso que, há alguns dias atrás, mirando o “Yutube”, me deparei com uma cena de partir o coração em pedaços: estão umas cinco pessoas em círculo. No meio delas dois cães, um pitbull castanho acinzentado, de cabeça mastodôntica, e um golden retriever com os seus pelos ruivos e alongados. O pitbull ataca o golden com uma violência inusitada abocanhando-lhe uma pata dianteira. O pobre golden põe-se a gemer, a ganir, a ladrar de dor. De vez em quando o pitbull abana violentamente a cabeça, quase arrancando a pata do golden, cujos latidos de dor cortam a alma. O golden, para se defender, também ataca o focinho do outro que, sacode ainda mais a cabeça, quase fazendo voar o golden. O que fazem os cinco espetadores? A dona do pitbull puxa-o sem força. O dono do golden tenta bater na cabeça do cão grande com as suas mãozinhas. Dos outros, dois têm paus na mão, acho que um tem um é uma barra de ferro. Ameaçam. Dão toques com as pontas dos cacetes nos flancos do pitbull. A cena dura quase um minuto dilacerante. Os parvos dos assistentes gritam para o pitbull parar, alguns dão-lhe uns inofensivos pontapés, mas a pata do golden já está destroçada e em sangue. E a cena pára aqui.

O que me revolta é: porque é que nenhum daqueles dois tontos que tinham paus na mão não zarparam uma fisgada no lombo do pitbull para o porem de lado, desmaiado, a fugir, de qualquer maneira, mas deixando o golden em paz? Ninguém teve coragem, toda a gente teve medo.

Isto fez-me lembrar o cenário da Ucrânia: enquanto o pitbull russo abocanha o golden retriever ucraniano, o mundo assiste. Toda a gente acha que o pitbull russo é o criminoso que ataca o pobre e indefeso golden. O resto do mundo assiste, fazendo carícias à Rússia, pensando que a está a travar. O que são os paus? O primeiro está nas mãos da Europa: todos os dias oferecemos à Rússia, em troca do seu gás, mil milhões de euros. Desde que a guerra começou, a Europa já deu à Rússia 50 mil milhões: estamos a financiar a ofensiva russa, nós que, em sede de Parlamento Europeu, nos sentimos orgulhosos de oferecer à Ucrânia mil e duzentos milhões de euros, ainda por cima com o voto contra da extrema esquerda. Uma verdadeira paulada no pitbull era cortar esse financiamento à Rússia, mas, tal como o homem do pau, também nós temos medo: antes morram os ucranianos sob as bombas do que nós de frio. O segundo pau é o dos Estados Unidos, que têm mil e uma maneiras de fazer travar esta guerra, apenas com o desmesurado busílis da questão nuclear. E o pitbull continua a destruir o golden diante dos nossos olhos.

A primeira leitura de hoje, Sexta-feira Santa, é tirada de Isaías, um trecho lindo, conhecido como um dos cânticos do Servo de Javé, que fala do sofrimento e da morte do justo: “Desprezado e repelido pelos homens, homem de dores, acostumado ao sofrimento, era como aquele de quem se desvia o rosto, pessoa desprezível e sem valor para nós.” Sobre ele, o profeta diz também: “Ele foi trespassado por causa das nossas culpas e esmagado por causa das nossas iniquidades. Caiu sobre ele o castigo que nos salva: pelas suas chagas fomos curados.” É esse Jesus antecipado por Isaías que celebramos hoje. E celebramos hoje não apenas o passado da Sua Paixão, mas todos os presentes de dor, injustiça, sofrimento, miséria e morte, que vão atualizando dolorosamente a universal Paixão de Jesus.

É a Ucrânia hoje – como muitos ouros lugares mais longínquos no espaço e no coração – essa nação de dores, acostumada ao sofrimento, de quem desviamos o rosto, não o rosto da nossa cara mas o rosto da nossa ação, da nossa justiça. É a Ucrânia que foi trespassada por causa das nossas culpas, da nossa indiferença e da nossa notável e culposa incapacidade. As chagas da Ucrânia estão à vista, em Bucha ou em Donetsk, no Donbass ou em Mariúpol, a cidade de Maria, enquanto o Ocidente onde me encontro se vai desfazendo em notícias, opiniões, ameaças e sanções, mas não descarrega uma estocada que pare a Rússia.

No Evangelho de hoje – a famosa Paixão segundo São João – as últimas palavras de Jesus são: “Tudo está consumado.” E morre. A morte de Jesus é o ápice da História da Salvação. E é a mais revoltante de todas as injustiças: o mais puro, bom e verdadeiro de todos os homens foi morto de uma forma desumana e maquiavélica, sem que ninguém O tirasse daquele cálice. A reação a essa injustiça absoluta deu origem a um movimento que nunca mais parou. E, na verdade, aquilo que os algozes de Jesus pretendiam, travar a Sua mensagem, foi espetacularmente desfeito pelos Apóstolos: a doutrina de Jesus, o Cristianismo, cresceu a olhos vistos e virou-se o feitiço contra o feiticeiro.

É esta a nossa esperança: a injustiça brutal desta guerra não pode ficar por aqui. Não é sede de vingança: é fome de justiça. E bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Saciado de justiça: é isto que o mundo precisa de ser.

Cresce, em número e intensidade, o número daqueles que querem dar rosto humano a esta agressão russa. Os que dizem que Putin tem as suas razões, os que afirmam que Ocidente não entendeu a Rússia, os que sentenciam que, no fundo, a Ucrânia é uma extensão do império dos russos, os que se queixam da proximidade da NATO. A questão é: alguém entende as razões por que um pitbull atacou um golden retriever? Sim. Há uma: o golden retriver estava ao pé da boca do mastim.

 

*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.

Scroll to Top