Por Carmo Rodeia
A liturgia das grandes epidemias é sempre muito semelhante. Primeiro, as autoridades negam que ela existe, uma vez que é algo desconhecido e com potencial de abalar a economia e os sistemas de saúde. Depois, perante a evidência, vêm as medidas draconianas que provocam o medo e alertam para a gravidade da situação. E finalmente vêm os extremismos, consequência social e comportamental que passa a dominar a vida das pessoas. É aqui que estamos agora.
Por vezes dou comigo a hesitar fazer algumas coisas com medo desta pandemia e sobretudo de me tornar eu num agente ativo de contaminação dos meus, sejam os mais próximos sejam os meus semelhantes, que até posso nem conhecer. Este medo decorre não tanto de poder contrair a doença mas de poder ser o agente de contágio da doença. Não só por mim, mas pela pressão social que se gerou em torno desta doença: não vais visitar a mãe porque é um grupo de risco e tu contactas com tanta gente; não vês os sobrinhos pequenos porque são bébés e podes contagia-los sem saberes; não dás beijos nem abraços porque não sabes como estás; tens férias marcadas, a viajar no teu próprio carro, mas é melhor não ires porque se vais e apanhas o vírus…. Fazemos o teste, dá sempre negativo mas ainda assim temos medo…Do vírus? Não creio, mas da pressão social à sua volta, sem dúvida.
Sabemos, pela História, que, quanto mais tumultuosos são os tempos, mais excessos se cometem. E os extremismos, que são sempre excesso, exacerbam-se nestas alturas. O racismo, ou uma certa espécie de racismo, cuja denuncia até nem tem sido tão amplificada como deveria, é um dos males deste tempo. Não deixa de ser curioso, aliás, que perante uma pandemia global que não discrimina, e que até nos deveria aproximar com uma maior consciência da nossa própria vulnerabilidade, o racismo em relação à doença tenha aumentado drasticamente.
Vem-me à lembrança o quadro “O Triunfo da Morte”, do holandês Pieter Bruegel, exposto no Prado em Madrid, no qual o pintor retrata de forma poética e macabra o caos no período da peste negra: corpos amontoados são levados em carroças puxadas por caveiras. O tema, procedente dos livros do Apocalipse e do Eclesiastes, mergulha as suas raízes na cultura popular medieval, e poderia aproximar-se, em termos políticos, aos estragos produzidos na Flandres pelos Espanhóis para reprimir os protestantes. Neste território, ninguém se salva, nem sequer o rei, que, com a coroa e o cetro, abandona nas mãos da Morte o seu tesouro; nem os amantes que cantam, sentindo, já atrás de si o sopro da Morte.
Já não consigo pensar grande coisa sobre o vírus que mudou as nossas vidas, mas a analogia é evidente e imediata: caos, morte, acusação, culpa… Sem a querer desvalorizar, até porque é uma doença que mata, incapacitante e ainda incontrolada, o coronavírus transformou-se erradamente na nova peste do século XXI. Com origem na China e por isso tudo o que tenha os olhos em bico e mexa é um potencial agente.
Historicamente, a covid-19 não é a primeira doença que provoca este tipo de reações. Nos Estados Unidos da América (EUA), os imigrantes italianos foram responsabilizados pela poliomielite no início do século XX; vários grupos de migrantes, incluindo alemães e judeus, foram responsabilizados pela cólera na década de 1830. Mais recentemente, propagandistas de extrema direita nos EUA exploraram a pandemia da gripe suína de 2009 para afirmar que “illegal aliens” do México carregavam o vírus através da fronteira.
Como combater o racismo e uma pandemia em simultâneo? Há de ser, como diz o povo, a pergunta para um milhão de dólares. Pelo medo não será certamente, como também não será pela censura social e muito menos pela desconsideração do outro. O Evangelho mostra-nos que nem o leproso o foi.