Por Carmo Rodeia
A palavra “narrativa” entrou no léxico quotidiano. E, hoje, tudo parece resumir-se a “narrativas” como se a realidade, ela própria, pudesse ser relativizada pelos diversos pontos de vista. O problema é que estas narrativas vão sendo paulatinamente impingidas como se de verdades se tratassem e entram no domínio daquilo a que hoje se chama de pós-verdade.
O Oxford Dictionary, que designou a expressão “pós-verdade” como a palavra do ano de 2016, define-a como um adjetivo “relacionado com ou denotando circunstâncias em que os factos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que os apelos à emoção e à crença pessoal”.
Desde sempre que em política, mesmo em democracia, os decisores escondem, manipulam ou negam a verdade e, ao mesmo tempo, acusam os opositores de praticarem este tipo de comportamento, procurando desenvolver “narrativas”. Hoje contam com um aliado de peso: os media sociais.
Nestes meios fervilham notícias factuais, notícias adulteradas, rumores e notícias falsas, todas apresentadas com igual valor.
Todos os dias somos surpreendidos por estas noticias, as chamadas fake news. E, tal como a reprodução dos factos não constitui um valor protegido, a falsidade tornou-se praticamente impune.
Uma notícia falsa, incompleta ou `encriptada´, mas suficientemente verosímil e capaz de agradar a um grupo especifico, ao ser veiculada pelas redes sociais, adquire os atributos da verdade e muitos, perante a prova da sua falsidade ou distorção, recusam-se a reconhecê-la. Na política de pós-verdade deixou de ser necessário exercer o “controlo da realidade” avançado por George Orwell no seu livro 1984 porque as pessoas deixaram de estar disponíveis para esse exercício e até, nalguns casos, defendem a mentira por questões de identificação ideológica e maniqueísta, em que de um lado estamos “nós” e do outro estão “eles”, sendo que nós somos os bons e eles são os maus.
Desde que Donald Trump assumiu o poder, a Casa Branca tornou-se numa das autoras reiteradas das fake news que abundam na América.
Ainda no fim de semana, o diretor dos media sociais da Casa Branca, Dan Scavino Jr, a propósito do furacão Irma (pasme-se!!!), colocou imagens e fotografias de uma catástrofe natural num aeroporto, vendendo-os como imagens do Irma. Minutos depois houve um desmentido público do aeroporto de Miami porque uma das imagens mostradas não era nesse aeroporto embora tivesse sido apontado como tal.
Transformada em palco de um reality show global e permanente, a Casa Branca despreza a verdade e transforma-a em narrativa.
Infelizmente Trump é apenas o exemplo caricatural da tragédia em que se tornou a política, que se atrofiou e vergou a outros valores que não os do bem comum, simplificando-se ao ponto de desistir até da verdade objetiva mais elementar.
Hannah Arendt, no ensaio “A verdade e a política” antecipou o que estamos a viver. O mundo contemporâneo transformou a fabricação da mentira numa área de negócio.
Quando Estaline retirou Trotsky das fotos da Revolução Russa, antecipou a pós verdade, ao criar factos alternativos. Na mentira tradicional, esclarece a filósofa, o mentiroso guarda a verdade para si; na mentira contemporânea o mentiroso enreda-se na própria mentira, toma-a como verdade, tentando destruir a verdade como dado factual.
Trump é a incarnação perfeita do mentiroso moderno. Infelizmente não é o único. O problema é que manda e manda muito. Tal como os outros a quem estamos entregues. Vale a pena continuar a lutar pela verdade, mesmo que pareça um ato inglório.
As jornadas Diocesanas de Comunicação Social, que se realizam no Pico, a 27 de outubro, vão abordar este tema. Contamos com a sua presença.