Por Francisco Maduro Dias
Aconteceu em pleno rescaldo do sismo de 1 de Janeiro de 1980!
Como sabemos, por Nemésio, outros e até pela nossa própria história individual e familiar, um sismo muda tudo, de vez. O que era verdade, dois minutos antes, digamos assim, deixa de o ser, em definitivo e para sempre.
É uma espécie de morte em vida, que exige um renascimento profundo. Temos, realmente, de encontrar forças para, de dentro para fora, reconstruir os nossos espaços físicos e sociais, aceitar a novidade forçada, arrumar, na prateleira das memórias, aquilo tudo que nos envolvia e que se foi, para sempre.
Trago isto, hoje, neste sábado de Bodo de 2022, véspera de Pentecostes e a uma semana da Trindade, porque nem tudo é mau, nisto que nos acontece, periodicamente.
Como se sabe, a reconstrução das ilhas Terceira, Graciosa e de São Jorge, após o sismo, demorou anos e, como sempre e em circunstâncias semelhantes, atraiu gente de desvairados lugares do mundo. Foi assim que muitos operários e técnicos chegaram à Terceira e por cá ficaram, arranjando casa, casando, tendo filhos e misturando-se com a gente.
Ora aconteceu que, certa vez, aí por volta de 1986-87, assisti, mais uma vez, a um dos vários cortejos de Coroação do Espírito Santo, segundo o costume em Angra, onde os mordomos ou membros da comissão, de cada ano, convidam as crianças da área de influência de Irmandade para coroarem e para participarem.
O resultado, no cortejo, é ver meninos e meninas, mais pequenos, vestidos de branco, ladeados por outros meninos e meninas, já maiores, trazendo, no regresso da igreja e a caminho do império, a criança do meio o ceptro na mão e as dos lados segurando a brilhante coroa de prata sobre a cabeça dela.
É uma celebração bonita de ver, alegre, inspiradora e que envolve a comunidade, num ambiente de partilha e convívio, transmitindo, sempre, um perfume de alegria e sensação de enorme família.
Nesse cortejo vi, brilhante no seu vestido branco, uma menina, pequenina ainda, mas já com perto de seis ou sete anos, sisuda e preocupada, de ceptro na mão e procurando manter-se, como devia, no meio das duas que a ladeavam, e deitando um olhar de soslaio para cima, a confirmar o alinhamento adequado. A coroa, por cima da cabeça, anunciava já o regresso da igreja. Tudo rodeado de sol, estralejar de foguetes e música.
Pelo tom escuro da pele, essa menina seria filha de um dos muitos casais que aqui tinham chegado e ficado, depois do terramoto, enquanto as duas dos lados eram de pele mais clara, mas, no meio do burburinho da festa e do cortejo iam todas em grupo, sem sequer pensar nisso, desempenhando os seus papeis, como toda a gente em volta, aliás, apenas festejando e participando num ritual muito nosso, velho de séculos e inclusivo como poucos.
Senti-me muito bem, na minha pele de crente e de habitante destas ilhas!
Felizes Domingos de Bodo