Por Carmo Rodeia
“A morte de Gaza”, titulava um dos assuntos do Expresso Curto deste dia 9 de janeiro. Esta terça-feira Israel anunciou um período de tréguas nos bombardeamentos sobre a faixa de gaza, sobretudo no Sul, para que possa entrar ajuda humanitária feita de bens essenciais para uma população que vai morrendo à míngua. Pelo menos 23.084 palestinianos morreram e 58.926 ficaram feridos em ataques israelitas em Gaza desde 7 de outubro, de acordo com o Ministério da Saúde liderado pelo Hamas. O único hospital operacional está em risco de fechar, devido aos intensos combates, revelou a ONU. O Supremo Tribunal de Israel rejeitou o pedido da Associação de Imprensa Estrangeira para a entrada de jornalistas no território. São factos, sem qualquer subjectividade a não ser a dos números, que sendo o que são, podemos sempre achar que estarão empolados porque a fonte não é imparcial.
A decisão do Supremo Tribunal de Israel também não é neutra. Do que é que tem medo o estado hebraico: da liberdade de informar, do contágio que as emoções do contacto com a realidade dura e crua possa provocar nos relatos dos jornalistas, do aumento do número de vítimas inocentes agora do lado jornalístico, na sequência de bombardeamentos do exército israelita sobre denominados alvos militares?
Informação sem liberdade não é boa informação. E num Estado de Direito, como é o Estado de Israel, não reconhecer isso é negar justamente um dos princípios fundamentais que o distingue de um bando de terroristas que governam um enclave onde milhares de inocentes sobrevivem sem qualquer liberdade.
Este ano assinalamos em Portugal os 50 anos do 25 de abril e certamente ouviremos, e bem, falar de liberdade. Acho mesmo, que no final do ano, naqueles inquéritos que habitualmente se fazem sobre tudo- quem foi o melhor, o pior, o mais ou menos e qual a foi a palavra mais repetida-, não hesitaria em antecipar já que a palavra liberdade será uma delas. E ainda bem, porque a liberdade é um tesouro que só é verdadeiramente apreciado quando o perdemos. E antes do 25 de abril muitos não a tinham. Justamente porque o Estado não zelava pelas liberdades individuais e até as oprimia coartando várias expressões dessa liberdade individual como a liberdade de expressão, de opinião ou de associação. Para muitos de nós, habituados a viver em liberdade, muitas vezes, parece mais um direito adquirido do que um dom e uma herança a ser preservada.
Num texto publicado no L’Osservatore Romano, em abril de 2018, comentando a Carta aos Gálatas, o Papa dizia que num mundo “esquizofrénico”, cada “vez mais escravo” de modas, ambições e dinheiro, a liberdade proposta por Jesus e realizada, também nas provações, pelos apóstolos e pelos muitos cristãos que hoje são vítimas das perseguições, ajuda-nos a permanecermos sempre livres.
“Na linguagem diária — reconhecia Francisco — muitas vezes pensamos que ser livre significa fazer o que eu quero e com frequência”; mas quer dizer também “tornar-se escravo, porque se aquilo que eu quero é algo que mantém o meu coração oprimido, eu sou escravo disso, não livre”. E, na verdade, a liberdade hoje centra-se muito no eu e nos direitos individuais. É colocada mesmo acima da vida. Cada um deve pensar, exprimir-se, agir e viver como entende, apenas admitindo como possível que a liberdade individual termina onde começa a dos outros e todos, mesmo o Estado, devem respeitar.
A liberdade é um direito mas também encerra um dever.
Que liberdade vivemos e procuramos?
Que liberdade pode contribuir para a minha realização pessoal, a feliz convivência com os outros e a construção do projeto comum de desenvolvimento da humanidade na justiça, na solidariedade e na cooperação?
O catecismo da Igreja Católica define a liberdade como “o poder, radicado na razão e na vontade, de agir ou não agir, de fazer isto ou aquilo, praticando assim, por si mesmo, ações deliberadas. Pelo livre arbítrio, cada qual dispõe de si. A liberdade é, no homem, uma força de crescimento e de amadurecimento na verdade e na bondade. E atinge a sua perfeição quando está ordenada para Deus, nossa felicidade completa”.
Regresso à Carta de São Paulo aos Gálatas. Na Carta é enaltecido o dom da liberdade de Cristo aos seus discípulos, que comporta um modo de viver novo quer em relação à lei religiosa quer no domínio dos próprios instintos e tendências do corpo e do próprio ser.
Neste sentido, a liberdade implica a possibilidade de escolher entre o bem e o mal e, por conseguinte, a pessoa que pratica mais o bem, vai-se tornando mais livre. Não há verdadeira liberdade se não está ao serviço do bem e da justiça.
Volto ao ponto de partida e o que mais me incomodou: o Supremo Tribunal de Israel recusou a entrada de jornalistas estrangeiros em Gaza. Reformulo a pergunta: do que tem medo o Estado de Israel? A pergunta não é retórica nem tem um pressuposto religioso, mas não posso deixar de olhar para esta questão a partir da liberdade cristã.
Jesus Cristo, diz o Apóstolo, libertou-nos “para a verdadeira liberdade” e esta é vivida na caridade, segundo esta palavra: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Esta é porventura, a única liberdade que permite reconhecer e tratar os outros como irmãos e construir com todos a fraternidade. Se assim fosse entendida a liberdade nesta zona da Palestina, o Supremo Tribunal de Israel não sentia a necessidade de impedir que jornalistas estrangeiros entrassem em Gaza, pura e simplesmente porque eles entrariam livremente. Se quisessem…