Tolentino Mendonça- padre, professor e poeta- diz que na crise, perante a falência dos mercados, é preciso recentrar o Cristianismo na pessoa e desenvolver uma teologia do encontro. A Igreja tem de «se demorar na casa dos homens».
Portal da Diocese (PD) – Estamos a terminar o Ano da Fé. Que balanço faz?
Pe.Tolentino Mendonça (TM)- O ano da Fé foi um ano muito singular por todos os acontecimentos que mesmo dentro da igreja ocorreram. Pensemos na renúncia do Papa Bento XVI e na chegada do Papa Francisco e tudo o que isso significou. Mas, este ano foi, particularmente importante, porque colocou a Fé na agenda, no diálogo entre os cristãos porque muitas vezes o problema é a fé ficar implícita e não haver uma reflexão sobre o que é a Fé. E esta encíclica Lumen Fidei, escrita a quatro mãos, tem servido para dar uma centralidade às questões da Fé.
PD- Os tempos são facilitadores dessa vivência da Fé de forma tão madura?
Pe TM- Tenho uma visão sempre muito positiva. Não vale a pena ficarmos em idealizações da Fé; é preferível olhar para os factos concretos e para as novas realidades. E, neste sentido, este nosso tempo é propício e constitui uma oportunidade para debater as questões da Fé. E, todo o cenário que se possa perspetivar de dificuldade deve ser um estímulo para a reflexão. O que é importante é que não olhemos para a realidade como um obstáculo. Um cristão não o pode fazer.
PD- Mas percebe que hoje, devido à situação particular de cada pessoa, há dificuldades acrescidas para pensar e viver a fé…
Pe TM- Então o desafio é irmos ao encontro das pessoas. Aí está a chave! Ir ao encontro desta realidade até porque um dos elementos originais da experiência cristã tem sido sempre uma enorme capacidade de ir ao encontro da realidade, sem a ignorar. Neste tempo não podemos fazer diferente.
PD- Esse tem sido, de resto, o apelo do Papa Francisco…
Pe TM- Penso que o Papa Francisco traz um discurso de uma enorme importância justamente porque ele não demoniza a realidade; olha para ela e não se enche de pessimismo. Onde houver uma mulher e um homem há sempre uma oportunidade para o anúncio de Jesus Cristo. E, isto tem de estar muito consciente na mente dos cristãos, porque a teologia do encontro, que o Papa Francisco nos propõe, tem de estar no centro de um novo estilo da Igreja que tem de se empenhar em promover a relação e o encontro. Isso pressupõe estar disponível para encontrar o que é diferente e o que possa constituir uma dificuldade. No fundo, trata-se de reaprender a arte do diálogo, naquilo que na palavra de Jesus é tão profético: “Se alguém te pede para o acompanhares numa milha, acompanha-o durante duas”. Nós precisamos de reaprender a escutar a palavra.
PD- Quando diz Nós, não exclui ninguém e muito menos a hierarquia?
Pe TM- Claro que não. Nós vivemos um momento histórico, que não pode ser desaproveitado. Chega de pessimismos, que na maioria das vezes, são desculpas para não fazermos o que devemos. Dizer que há obstáculos ou que a realidade é difícil pode ser uma desculpa para justificar o imobilismo e para não sairmos da nossa zona de conforto que tem muito pouco de evangélico.
PD- Nesse encontro com o outro o que é que o cristão deve levar consigo?
Pe TM- Antes de tudo, o cristão tem de levar a arte da hospitalidade. Ter um coração aberto ao outro porque se há lugar sagrado que é a epifania de Deus é a pessoa humana. E, nesse sentido, à frente não deve estar a doutrina mas sim o abraço que é tudo aquilo que somos e transportamos. Trata-se, por isso, de um encontro concreto, longe da teoria. Aquilo que Jesus dizia “Entrai em casas, comei e bebei do que vos derem”. Ora, eu creio que a Igreja tem hoje, particularmente, de se demorar em casa dos homens.
PD- Essa proposta inclusivista do papa Francisco é , para já, uma das boas novas deste papado?!
Pe TM- O estilo no cristão não é uma questão secundária, é uma expressão profunda do ser, é uma atitude. Temos de acompanhar o Papa Francisco neste estilo mais humano, mais simples e mais fraterno dando o sinal de que a Igreja está pronta para abraçar realmente o outro.
PD- Quando o Santo Padre nos convoca para chegarmos às periferias percebemos que elas são muitas e bem próximas de nós. Qual é realmente o papel da Igreja , de cada um de nós, nesta caminhada?
Pe TM- Há uma coisa em que acredito: não nos falta nada; nós temos tudo para sermos cristãos. Lembro-me de uma página do Principezinho, em que ele está a puxar água de um poço no meio do deserto e tem lá tudo, a nascente, o poço, o balde , a roldana… Se olharmos para o interior de nós está lá tudo. É uma questão de ativação. Esta é a palavra chave da igreja hoje: ativação. Não temos de descobrir a pólvora, apenas ser…
PD- Estar e voltar a situar as prioridades, se calhar…
Pe TM- Sem dúvida que muitas vezes vivemos um Cristianismo sociológico, mais de pertença do que de essência e, aí podemos perguntar-nos o que é que o Cristianismo representa realmente para cada um de nós em termos de vivência, sobretudo se olhamos muito para o nosso umbigo…
PD- Há essa realidade efetiva de que as pessoas vivem a fé de uma forma muito isolada?
Pe TM- Hoje há uma dimensão comunitária a descobrir. O facto de vivermos o Cristianismo ao lado uns dos outros, não quer dizer que o vivamos uns com os outros e isso tem de fazer a diferença.
PD- Vivemos uma crise que está para além dos mercados. Esta crise roubou-nos Jesus dos nossos corações?
Pe TM- Não é isso que sinto. A dimensão espiritual ganha cada vez mais lugares. Há um descrédito em relação ao mito do bem estar, da riqueza, do progresso, da técnica. Esses ídolos é que estão a cair. A espiritualidade encontra cada vez mais espaços e interlocutores que há muito tempo estavam indisponíveis para a acolher.
PD- Mas esse espaço não poderá ser acolhido por outro tipo de espiritualidade que não a cristã…
Pe TM- É um caminho…Há uma palavra de Jesus – Quem não é contra nós é por nós- e isso é muito importante para não apagarmos a pequena chama que ainda resta ou a luz que ganha um novo fôlego. O caminho para Cristo não é fácil, e a igreja tem de ser paciente e tem de saber dialogar com esta sede espiritual que, muitas vezes, aparece cheia de ambiguidades, difusa e até enigmática, a querer ser tudo e nada ao mesmo tempo. Saber dialogar com isso é muito importante. O Cristianismo não é uma imposição; é uma forma de diálogo.
PD- A igreja tem sabido dialogar, por exemplo com os jovens?
Pe TM– Bom, as jornadas do Rio mostraram como os jovens estão comprometidos com Cristo. Eles são o exemplo de que o coração da igreja pulsa e é jovem. Agora há a questão da transmissão da Fé, de como é que ela se comunica. E, neste aspeto, julgo que a Igreja tem de encontrar novas formas, novas linguagens e novos instrumentos para comunicar intergeracionalmente. O fosso entre gerações hoje é muito maior do que era há umas décadas atrás quer em termos de mentalidade quer em termos das técnicas que são utilizadas e dos conhecimentos que são partilhados. De novo, a Igreja tem de ir ao encontro, neste caso do mundo juvenil.
PD- É aqui que entra a rede tão falada nos últimos tempos?
Pe TM- Sem dúvida. Os jovens hoje são nativos digitais. A nossa geração adulta usa a internet como instrumento. Eles vivem na Internet, são nativos, é o seu espaço. É aqui que constroem relações, desenvolvem emoções e aprendizagens. Ora, aí está um desafio: aprender a teologizar esses espaços que nos parecem neutros. Aqui há humanidade que precisa de ser tocada e acompanhada pelo Evangelho.
PD- Como é que nós podemos pedir a uma pessoa que tenha fé quando ela tem é fome real porque não tem dinheiro, perdeu o emprego, tem filhos para sustentar…
Pe TM- O Papa Francisco tem sido um farol: tem apelado à Igreja para que seja pobre e se coloque ao serviço dos mais pobres. E este é um grande desafio para as comunidades cristãs. É preciso reinventar a caridade de forma a que ninguém fique para trás. Este é um enorme desafio de hoje.
PD- Vivemos a ilusão de que era possível passar de um assistencialismo puro para uma reconstrução da rede social. Hoje, volvidas mais de duas décadas, percebemos que o modelo novo também não funcionou. Qual é a mensagem que a Igreja deve ter?
Pe TM- A igreja é um elo de ligação importante. Ai de nós se não fosse a Igreja! Então as coisas ainda seriam muito piores. É a igreja que tem uma rede de proximidade que ajuda diretamente as pessoas. Se não fosse essa rede do bem, então tudo seria ainda pior.
PD- Como é que vê o país neste momento?
Pe TM- É um duplo sentimento: por um lado, uma enorme responsabilidade mas, por outro, uma grande preocupação. Sinto que neste momento somos chamados, todos sem exceção, a arregaçarmos as mangas e fazermos as opções fundamentais e isso passa pela pessoa humana. Uma pessoa vale infinitamente mais que os mercados.
PD- Não parece ser essa a visão dos nossos governantes…
Pe TM- Mas é este o caminho: escolher a pessoa e, por outro lado, manter uma atitude de esperança, no sentido de que tem de haver um caminho e ninguém pode ser deixado só ou deixado para trás.
PD- Falta um pouco de doutrina social da igreja aos decisores de hoje, são pouco cristãos?
Pe TM- A igreja tem de ser neste momento tem de ser o carro vassoura, aquele que vem atrás e limpa sem deixar ninguém. Esse é o nosso papel. A igreja tem de ter sempre um discurso profético e tem de se colocar, claramente, ao lado da pessoa humana.
PD- E a igreja está definitivamente preparada para isso?
Pe TM- Eu penso que cada vez mais os cristãos têm uma consciência clara de que esta é a hora de viver até ao fundo o Evangelho.
PD- Amanhã qual é o grande desafio da igreja?
Pe TM- (silêncio) O desafio de amanhã, o amanhã dirá… mas eu penso que há três grandes desafios. O primeiro é esta dimensão comunitária. Provavelmente, vamos vivê-la em comunidades mais pequenas e com muitas limitações. Os templos vão deixar de encher-se mas a igreja tem de se redescobrir como comunidade e este é um enorme desafio. Outro grande desafio é a igreja tornar-se mais evangélica, o que passará por uma purificação e pelo recentrar naquilo que é essencial. E, por fim, a Igreja tem de redescobrir o santo poder do coração. Tem de exercitar o ministério da compaixão, do acolhimento, e da bondade nas sociedades.
PD- O que espera deste novo Papa ?
Pe TM– Eu olho para o Papa e vejo um cristão original e autêntico. Há um texto da Hannah Arendt, a filósofa, muito bonito sobre João XXIII intitulado “ Um cristão sentado no trono de Pedro”. É isso que vejo neste Papa. O que eu espero é aquilo que ele é. Os aspetos que têm a ver com a doutrina corrente não vão dispensar um diálogo com a realidade concreta. Se pensarmos que no século XIX, a Igreja tinha imensas resistências às vacinas e a tudo o que a técnica médica trazia à luz do dia, hoje verificamos que tudo isso é pacífico. Ou seja, a igreja tem sabido adaptar-se aos tempos. E daqui para a frente não será diferente, numa total fidelidade a Jesus e à pessoa humana. É assim que é necessário.
PD- Poderemos esperar um papel interveniente na “pacificação” do ideal europeu?
Pe TM- A igreja tem uma responsabilidade muito especial pela Europa. Nós cristãos europeus somos convocados a descobrir outras paragens e até nisso o Papa Francisco representa esse sinal de vontade da Igreja redescobrir outros continentes. Como ele disse, vem lá do fim do mundo. A Europa, se calhar, só se resolve na redescoberta que temos de fazer uns dos outros, locatários deste belíssimo planeta que é a Terra, liderados pelo Papa que é o grande líder moral e ético, simplesmente porque nos recentra naquilo que é essencial. Todos os cristãos devem, de resto, ser esse guardião ético porque se os balanços financeiros do mundo estão caóticos, os éticos ainda estão mais.