Pelo Padre Emanuel Valadão Vaz*
Em tempos de incerteza face às situações bélicas vividas pelo mundo fora, umas esquecidas outras conhecidas até à exaustão, assim vamos vagueando ao sabor dos donos da informação. Inclinam-se e inclinam-nos, sem nos darmos conta, para o lado que mais lhes convém.
No meio do terror da guerra vamos ouvindo números sem conhecermos os rostos daqueles que são forçados a viver em guerra e a perder a liberdade de viverem neste mundo, que parece cada vez mais ser de poucos, onde a maior parte é cada vez mais figurante do que participante.
Vem este introito a respeito de um tema que para muitos tem pouco a ver com o que se disse atrás. Refiro-me ao tema da espiritualidade.
De que serve falar de espiritualidade se não se consegue contemplar nas realidades do mundo um pequeno raio do Espírito de Deus, sejam elas de cariz mais dramático e até de desespero, sejam elas de espanto perante a beleza e a criatividade provocadas pela arte do ser humano.
Tudo o que nos fere e/ou nos alegra dá-nos a possibilidade de um vislumbre, de uma porta de entrada para alguma coisa que nos faz sair de nós e nos impele a ir em socorro.
Uma vocação nunca parte do nada, mas é sempre fruto da contemplação de algo que se passa com a vida que gira à nossa volta, mais evidente ou mais escondida. Geralmente só damos conta mais tarde, quando assumimos que, afinal, houve alguém que nos fez alargar o coração para um chamamento concreto, para nos sentirmos atraídos para algo que está mais além do nosso eu.
Começamos então a perceber que a espiritualidade é fruto de uma provocação feita por algo concreto da vida. Aliás, o próprio Deus quis-nos abrir o caminho ao habitar a nossa realidade carnal.
Se não contemplarmos o que se faz carne, inclusive o próprio Deus se fez carne em Jesus Cristo, jamais perceberemos o verdadeiro sentido da espiritualidade.
Podemos ter duas respostas face à realidade que nos fere: ou ficamos no campo da indignação que logo de seguida esquecemos ou ficamos no campo da atração que nos leva a agir, porque vestimos a pele de quem é ferido.
Por isso, se queremos assumir uma espiritualidade não deixemos de abraçar o que a vida do mundo nos proporciona, mas igualmente, façamos uma leitura do que isto nos fala de Deus, como se comunica em cada acontecimento.
Aqueles que receberam um determinado carisma concedido pelo Espírito Santo, não o receberam sem antes terem feito um processo de discernimento e aí contemplarem a ação de Deus no meio dos acontecimentos.
Vou falar-vos de um padre, António Chevrier, que no século XIX foi chamado a viver um carisma. O carisma deste padre foi fruto da contemplação de uma realidade concreta, de um bairro pobre, que se agudizou por uma catástrofe natural provocada por umas cheias que galgaram as margens do rio Ródano e tornou ainda mais difícil a situação daquelas pessoas, cuja vida já era bastante dura.
Ele leu este e outros acontecimentos à luz do presépio, na noite de Natal de 1856, ao contemplar Jesus na manjedoura, o qual se fez pobre para ser um igual a nós.
Esta visão, não foi extraordinária porque partiu de uma realidade concreta, fê-lo perceber que precisava seguir mais de perto Jesus Cristo que se fez pobre. Ele procura depois pôr isso em prática, não sozinho mas com outros.
O carisma é algo que não se confina a uma só pessoa mas que depois ganha o sentido da universalidade, passa a ser de toda a Igreja. Todo o carisma nascido na fé batismal é para toda a Igreja, nunca é privado. Tem um cariz missionário, para dar fruto, para ser fecundo. Trata-se de uma fecundidade apostólica.
Portanto, a toda a Igreja é dada a possibilidade de conhecer esta forma de ser fiel ao seu batismo.
Do carisma deste homem nasceu uma espiritualidade do padre diocesano, chamada espiritualidade do Prado, que assenta em determinados meios, sendo o mais importante o estudo do Evangelho. Mas que se abriu também a outros: como sejam leigos consagrados, homens e mulheres; religiosas, que constituem a família espiritual do Prado e que se comprometem em seguir mais de perto Jesus Cristo, para melhor responder à vocação de anunciar Jesus Cristo aos pobres. Aliás, esta é também a vocação de toda a Igreja, como nos referiu o Concílio Vaticano II.
O padre Chevrier, fundador da Associação dos Padres do Prado, beatificado pelo Papa João Paulo II em 1986, cujo processo de canonização está em andamento, diz-nos que quem quiser estar cheio do Espírito de Deus deve estudar Jesus Cristo todos os dias: as suas palavras, os seus exemplos, a sua vida. Esta é a fonte da qual encontraremos a vida, o Espírito de Deus.
António Chevrier expressa a sua profunda convicção nas três seguintes declarações:
“Conhecer Jesus Cristo é tudo; ter o Espírito de Deus é tudo; só uma coisa é necessária: fazer bem o catecismo para anunciar Jesus Cristo aos pobres”.
Tudo isso deve ser sempre visto na perspetiva do dom. E como tal, deixaremos que o Espírito de Deus nos forme e nos dê a largueza de coração para apreender, a partir da realidade que contemplamos, as inspirações que nos ajudem a converter o nosso interior e assim correspondermos de forma mais verdadeira à missão a que Deus nos envia.
*O Padre Emanuel Vaz é Coordenador do Prado de Portugal