A fraternidade

Por Carmo Rodeia

Hoje e amanhã todos os olhares se concentram em Francisco. O Papa vai assinar este sábado a encíclica “Todos Irmãos”, que dará a conhecer ao mundo no domingo. E vai fazê-lo em Assis,  junto ao túmulo do Santo do amor fraterno para com todas as criaturas da terra.

Nada mais simbólico do que isto: o Papa que criou as condições para que a Humanidade desse uma segunda oportunidade à Igreja Católica, escreve um documento sobre a Fraternidade, um valor que como bem sublinha o cardeal português Tolentino Mendonça “ainda não tem valor político”. E quando olhamos para o mundo à nossa volta e vemos que a riqueza do mundo está concentrada em pouco mais de meia centena de pessoas, que cabem num simples autocarro, é difícil não valorizar este documento profético de Francisco.

Pelo o que sabemos deste documento a encíclica percorre temas recorrentes da Doutrina Social da Igreja como os direitos da pessoa humana, a cidadania,  o bem comum, o trabalho, os modelos de desenvolvimento económico e social, a construção da justiça e da paz e a fraternidade e amizade social.

Do legado da Revolução Francesa, que sublinhou o primado da Liberdade, Igualdade e Fraternidade (embora este expurgado de toda a sua dimensão cristã), o poder político, e as sociedades em geral, insistem em enjeitar o terceiro elemento como se ele não fosse pudesse pertencer à esfera pública e fosse algo privado, e que por isso não mereceria um consenso social alargado.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos que refere as relações entre os seres humanos como uma reciprocidade, uma interação, apresenta-nos a fraternidade como o elo que torna a igualdade e a liberdade efetivos e dá-lhe esse estatuto, embora na prática se faça dele letra morta.

Sucessivos Papas, de João XXIII a João Paulo II, escreveram sobre as questões sociais. Mas foi Bento XVI, na Caritas in Veritate , que nos propôs a fraternidade universal como solução para o desenvolvimento humano e integral num tempo de globalização e de crise. O Papa teólogo alertava, aliás, para o facto de sermos cada vez mais vizinhos mas que isso não nos tornava necessariamente mais irmãos. E este é, porventura, o grande desafio que esta nova encíclica do Papa Francisco nos pode propor recentrando-nos no essencial: o princípio da dignidade da pessoa humana aponta para o conceito de alteridade, de respeito pelo outro enquanto único e diferente, oferecendo as condições de possibilidade para a sua existência digna.

Numa perspetiva cristã, somos todos filhos e verdadeiros irmãos. Ao sermos criados por um Deus que é trindade, trazemos connosco esta marca relacional trinitária, que é comunhão, que é a fraternidade universal. E não só nós os batizados. O “nós” são todas as pessoas independentemente da cor, da raça, do género, da religião ou do sítio onde habitam.

Esta é de facto a grande profecia que Francisco nos lembra na sua nova encíclica: um eu que deixa de o ser, para se transformar em nós, um espaço de Amor e de amizade. Não tem de ser apenas uma utopia, se o encararmos como um dom. E, nós cristãos, temos esta obrigação primordial.

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