O Bispo do Porto, convidado de honra das Festas do Senhor Santo Cristo, apela a uma igreja em saída, mais una e centrada na experiência da família. Numa entrevista exclusiva ao Portal da Diocese, partilha a sua primeira experiência de fé, no contexto desta religiosidade popular concreta.
Nomeado pelo Papa Francisco Bispo de Porto a 21 de fevereiro deste ano, D. António Francisco dos Santos é natural de Tendais, Cinfães. Foi ordenado sacerdote na Igreja Catedral de Lamego, em 1972.
Em 2004, foi nomeado Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Braga, com o título de Meinedo, pelo Papa João Paulo II e em 2005, foi ordenado Bispo na Igreja Catedral de Lamego, tendo passado um ano depois para a Diocese de Aveiro.
Este ano veio presidir às Festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres, a convite do Bispo de Angra e falou na primeira pessoa ao Portal da Diocese.
Portal da Diocese (PD)- É a primeira vez que vem aos Açores em “peregrinação”, presidindo às Festas do Senhor Santo Cristo. Depois desta procissão que sentimento tem acerca deste culto e das manifestações de fé a que assistiu?
D. António Francisco dos Santos – É a primeira vez que venho a esta festa, embora já tenha vindo cá duas vezes para reuniões, uma com o Serviço Diocesano da Pastoral das Migrações. A segunda vez desloquei-me no âmbito da Pastoral Vocacional, para trabalhar com as equipas de formação do Seminário.
Esta realidade da devoção e da religiosidade popular foi sempre muito importante para mim como área de estudo, porque sempre vi nela uma grande expressão e escola de fé.
Procurei ler e integrar-me da história deste culto. Mas, na realidade uma coisa é o que lemos e, outra, o que vivemos e sentimos.
PD- O que é que viveu e sentiu ao ver estes milhares de fieis?
D. António Francisco dos Santos- A experiência deste dia foi um verdadeiro oceano onde mergulhei num profundo testemunho de fé, não só dos locais mas de pessoas de outras paragens, até gente das diferentes dioceses que já servi, inclusive da minha terra natal.
Esta realidade já extravasou as fronteiras geográficas da ilha de São Miguel porque vai no coração e na vida de todos.
A minha experiência diante desta revelação do amor de Deus é o que de mais belo há no Evangelho, que é tudo o que temos e somos e no testemunho da igreja que é sermos amados, cada um na sua realidade concreta.
Depois, há uma outra dimensão que gostaria de sublinhar e que me impressionou. Ver as famílias no seu todo, gente de todas as idades.
PD- Esta é uma festa de Encontro de famílias…
D. António Francisco dos Santos – Eu creio que a ação pastoral da Igreja tem que dar centralidade ao testemunho da beleza, da felicidade e da fidelidade da família. A experiência da festa do Senhor Santo Cristo faz-nos bem porque todas estas famílias vêm à festa, juntam-se a outras famílias e assim contagiamo-nos todos, ao jeito de uma enorme família que é a igreja.
PD- Esta festa de encontro com a fé é também uma festa de encontro enquanto comunidade. Sabem os cristãos viver realmente, no dia a dia, este sentido de encontro comunitário?
D. António Francisco dos Santos- Há 50 anos que temos vindo a fazer um enorme esforço na descoberta do conceito de comunidade: a igreja como povo de Deus, peregrina, que se reparte em pequenas comunidades sejam as paróquias, as novas comunidades de evangelização, os movimentos e a própria família que é o núcleo mais central. Julgo que a chave está na família, que é igreja doméstica e, por isso, a primeira escola de amor e de fé.
Mas, a descoberta da Diocese como comunidade, das ouvidorias ou das paróquias é um percurso que tem de ser feito. É por aí que tem de passar o futuro da renovação da Igreja.
A partir da comunidade cristã podemos ser fermento transformador do mundo, porque apesar de vivermos num tempo de globalização, em que as pessoas estão mais próximas, não conseguimos ainda ser mais irmãos. E a comunidade é uma experiência de fraternidade, de comunhão e de sustentabilidade nos momentos difíceis. Ou seja, todos temos de ser cireneus na medida em que tal como Jesus não ficou, também ninguém deve ficar sozinho. E a igreja tem de ser esta escola de comunhão.
PD- Vivemos tempos difíceis. A cruz que todos nós carregamos hoje é grande. O olhar de Jesus, através da imagem do Senhor Santo Cristo, pode ser o bálsamo para este sofrimento?
D. António Francisco dos Santos- A Europa e Portugal, em particular, vivem tempos difíceis. Aliás isso é visível a partir dos dados da emigração, em que comunidades inteiras buscam melhores condições de vida noutras paragens.
Não estamos num tempo fácil mas há algo positivo nisto tudo: é que também vivemos um tempo em que temos a perfeita consciência de que não podemos viver sozinhos nem sermos felizes isoladamente. Aliás, não podemos viver sozinhos nem na abundância nem nos temores.
Temos de encontrar respostas para as crises. A Igreja e a família têm constituído essa resposta porque são realidades estruturantes, onde a esperança renasce. É na família e nas comunidades que as pessoas se sentem acompanhadas, amparadas, sobretudo nos momentos mais complicados das suas vidas.
Ninguém está ou pode estar só. Cristo também não estava só. O seu olhar sereno, firme e terno dá-nos a confiança de que haverá um mundo melhor.
As pessoas têm-me convidado a ver a intensidade do olhar de Jesus, por exemplo nesta imagem do Ecce Hommo.
Eu creio que é aí que temos de deixar que Jesus nos olhe, olhos nos olhos, e deixemos entra-Lo no nosso coração. O futuro do mundo seria mais solidário e atento. Temos de ser capazes de criar espaços onde esteja sempre presente este olhar de Deus.
PD- É essa a sensação que tem da fé destas pessoas?
D. António Francisco dos Santos- Sim. Este Santuário além de um espaço de graça e de dádiva deve ser uma escola de aprendizagem para os caminhos de renovação e evangelização da Igreja e de transformação do mundo.
Os Açores sempre constituíram essa experiência de transformação, com êxito, até em lugares com uma densidade populacional que configura uma realidade, por vezes, muito diferente da dispersão das ilhas.
Há que sublinhar a coragem dos açorianos em promover ações que levem os outros a terem fé. Um sacerdote que orientava uma comunidade açoriana nos EUA disse-me uma vez, que teve de vir aos Açores para perceber determinadas coisas. A devoção ao Senhor Santo Cristo começava em casa, onde se reuniam para rezar e ajudar os outros em nome do Senhor.
PD- Acontece o mesmo com as Festas do Divino Espírito Santo, onde a casa se transforma no primeiro lugar de culto…
D. António Francisco dos Santos- Sem dúvida… é a casa do Evangelho, a mesa da comunhão que nos remete para a certeza da Páscoa. Creio que os açorianos têm ajudado muito o país e o mundo. Mas ainda temos todos muito que fazer a partir da experiência dos Açorianos.
PD- Os Açores têm três grandes impérios no seu ciclo de vida: os Romeiros da Quaresma, o Santo Cristo e o Espirito Santo. De que forma esta fé, manifestada pela religiosidade popular, pode influenciar e complementar a vida em igreja?
D. António Francisco dos Santos- Muito rapidamente, diria que devíamos seguir estas três dimensões e fazer delas, em primeiro lugar, uma aprendizagem por onde passa a centralidade da nossa fé- o Deus uno e trino- o amor do pai, criador e depois a igreja.
Depois, penso que devemos perceber que a fé e a igreja, no caso dos Açores, transformaram a matriz de um povo, dando-lhe uma identidade especifica.
Hoje a igreja quer misturar-se com a cultura mas parece que tem de lhe pedir favor para entrar. É como se tivéssemos de reclamar um pequeno espaço quando, noutros tempos, a igreja soube sempre impregnar a cultura de um espirito de valor.
Numa terceira dimensão diria que a devoção açoriana nestas três realidades mostra bem que a fé do povo vive-se e respira-se na vida quotidiana. Não é forjada, é antes, uma alavanca que ilumina o caminho seja na caridade seja na misericórdia seja no amor.
Este é o caminho! A religiosidade popular tem que ter uma ação prática porque isso compromete a comunidade e tem de ter uma envolvência das estruturas paroquias ou dos movimentos.
Creio que a partir daí, se conseguirmos levar à pratica a ação social, a promoção da justiça, a capacidade de denuncia do que está mal e de anuncio de uma sociedade melhor, estaremos a dar um contributo importante para a construção de um mundo novo.
PD- E está a igreja a conseguir fazer isso?
D. António Francisco dos Santos- Era o que eu gostava de incentivar: dizer que os pobres têm de ter ajuda coerente com a vivência da fé; que as injustiças têm de ser superadas; que a transformação das realidades temporais pertence aos leigos empenhados e os devotos que têm de voltar para a família em missão. No fundo é uma igreja em saída, como diz o Papa Francisco. É uma igreja missionária, construtora de um mundo novo, que tem por base esta fé aqui celebrada neste espaço.
Não podemos ficar iguais depois de uma experiência de fé desta natureza. Na sua simplicidade, esta fé é muito verdadeira.
PD- Depois desta experiência de fé como é que podemos antever uma relação mais próxima entre estas duas dioceses, Porto e Angra, de forma a que a Igreja seja mais una?
D. António Francisco dos Santos- Faço muitas vezes esta pergunta: porque é que nós Igreja não conhecemos bem os Açores?! Seria bom partilharmos as experiências dos Açores.
Nós Igreja precisaríamos de estar mais atentos aos Açores e à sua expressão de fé, simples mas enorme.
Por outro lado, estou aqui e dou comigo a rezar sempre pela Diocese do Porto, a pedir ao Senhor Santo Cristo pelo Porto e que me inspire para levar até à minha comunidade, esta densidade de fé.
Finalmente, as nossas dioceses têm de estar mais próximas. O mar não nos separa, não nos afasta e a missão é a mesma.
Estamos completamente disponíveis porque podemos ajudar os Açores mas devemos aprender muito com os Açores.