Comissão Diocesana Justiça e Paz reflete Sobre a despenalização da morte assistida e lembra que o que está em causa, no debate da próxima quinta feira no parlamento, é um caminho de desfecho imprevisível
Numa nota intitulada “A minha morte também é a tua” a Comissão Diocesana Justiça e Paz da diocese de Angra afirma que “ir contra o primado da vida”, seja em que circunstância for, é “ atentar contra a Humanidade de todos os seres humanos”. Por isso, considera que a eutanásia é “ uma derrota humana, porque está na natureza humana dar tudo pela vida e nunca pôr a morte (o ato de matar) como equação”, seja “na guerra, nos lugares da fome, no aborto, na pena de morte, no suicídio ou na própria escolha livre de morrer” já que “nenhum homem é uma ilha”.
Na nota enviada ao Igreja Açores, este segunda feira, na qual este organismo diocesano da Igreja Católica se pronuncia sobre a despenalização da morte assistida, reconhece-se que a questão “não é simples” e apesar do perigo de propagação de ondas de choque, seja nas redes sociais seja nos media tradicionais, provocadas pelo extremar de posições a favor e contra a morte assistida, o debate no espaço público deve ser alargado e é “sempre positivo”.
“Pretende-se, acima de tudo, um debate sereno e esclarecedor, que nos ajude a discernir, e não uma campanha de slogans que apenas servem para desacreditar a posição contrária e não clarificar a própria”, esclarece a nota da Comissão que reitera a posição da igreja, enquadrando-a do ponto de vista moral e civilizacional.
“A posição da Igreja perante a eutanásia tem-se mantido constante ao longo do tempo” e baseia-se “no princípio da inviolabilidade da vida humana desde o seu início até ao seu fim natural”, recorda a nota.
“ `Não matarás´ não é apenas um mandamento religioso mas um princípio básico da moral natural, isto é, da lei que é comum a todos os homens de todos os tempos, e consagrado, já no século XX, na Carta dos Direitos Humanos”, sublinha a Comissão Diocesana para assinalar que “ qualquer ação para suprimir a vida de um ser humano, seja em que circunstâncias forem, é sempre um ato intrinsecamente mau”. E prossegue, citando documentos do magistério nomeadamente a Encíclica do Papa Paulo VI, Humanae Vitae: “se é lícito, por vezes, tolerar o mal menor para evitar um mal maior ou para promover um bem superior, nunca é lícito, nem sequer por razões gravíssimas, fazer o mal para que daí provenha o bem”, isto é “ por bons que sejam, os fins não justificam os meios”.
“Infligir a morte a alguém, por mais misericordiosa que ela seja, será sempre um mal, por menos mal que seja” conclui a nota que realça haver “valores humanos irredutíveis, que não podem ser sujeitos a exceções, sob pena de uma derrapagem civilizacional niilista, onde o único valor inquestionável será o da suprema liberdade individual”.
“ A liberdade é um valor situado, complexo, cuja orientação não é a mesma ao longo da vida. Não existe liberdade pura. E quem escolhe morrer não foi levado a isso apenas pelo sofrimento, tal como quem se suicida. Há uma sociedade da solidão e do abandono, que condiciona profundamente as escolhas de quem nela está inserido. Por outro lado, há sempre algo que se pode fazer melhor: há muito que apostar nos cuidados paliativos, há muito que fazer ainda”, prossegue a nota.
“É por isso que a eutanásia é, de alguma forma, uma derrota humana, porque está na natureza humana dar tudo pela vida e nunca pôr a morte (o ato de matar) como equação” frisa a nota que mais adiante lembra as “várias contingências” que sustentam este não à Eutanásia, como a fragilidade da rede de cuidados paliativos em Portugal que “deixa muito a desejar”, levando a que muitas pessoas excluídas, abandonadas e desprotegidas desejem a morte; os exemplos mais ou menos claros de “derruição do valor da vida” que são dados por países onde a eutanásia já é praticada há algum tempo, dentro de um quadro normativo legal; ou o facto dos parlamentares se apressarem na votação de um novo quadro legal sem ouvir os seus parceiros, nomeadamente a Comissão de ética para as Ciências da Vida.
“O princípio da liberdade individual (o direito a escolher a forma como se quer morrer) começa neste caso extremo que estamos a discutir: em caso de sofrimento insuportável e na proximidade de uma morte inevitável, devo ter o direito a que alguém me possa ministrar uma morte digna. Não sabemos onde e como acaba nem quais os próximos episódios”, realça a nota da Comissão Diocesana Justiça e Paz.
“A eutanásia não é uma questão apenas nem principalmente política. E vai ser discutida por deputados eleitos por partidos que, na sua maioria, não incluíram a despenalização da morte assistida nos seus programas. Neste sentido, um referendo à eutanásia, não sendo a opção ideal, porque a vida não se referenda nem deve ser objeto puro e simples de opinião pública, permite – assim esperamos – um debate aberto na sociedade portuguesa, com contributos de todos os quadrantes, sem pressas nem decisões eventualmente precipitadas”, prossegue ainda.
A Comissão Diocesana Justiça e Paz diz-se ainda “consciente” de que quem defende a despenalização da morte assistida, pode perguntar porque é que a sociedade ou Estado têm o direito de impedir uma pessoa de, em caso de morte próxima e inevitável e num sofrimento insuportável, tenha a possibilidade de escolher uma morte pacífica, pedindo que alguém a ajude a morrer, mas que esse não é o caminho.
“A Igreja não pode deixar de olhar com misericórdia e – podemos dizê-lo – angústia para o calvário em que muitos doentes se encontram, sem esperança de cura, aprisionados a um corpo que só lhes traz sofrimento. Seria, no mínimo, desumano, julgar a atitude de quem, em tais circunstâncias, pede que lhe aliviem o sofrimento, nem que seja com a morte” avança a nota do organismo católico.
“Não se trata de julgar ou condenar quem quer que seja. Trata-se de constatar que, nesses casos, mesmo os mais extremos, temos o dever de tudo fazer, não temos o direito de pisar uma linha vermelha que deve ser um marco civilizacional: nenhum homem, nenhum Estado tem o direito de eliminar a vida humana” esclarece ainda, destacando que “toda a liberdade é frágil e sujeita a muitas condicionantes”.
“O que dói na dor não é a dor em si, mas a falta de um ombro onde chorar essa dor. Falamos da imensa solidão com que morrem imensas, demasiadas pessoas nos nossos tempos” conclui a nota que termina a citar o cardeal José Tolentino Mendonça quando há 15 dias, num texto da Revista do Expresso dizia que “o sofrimento é vivido de modo diferente quando é acompanhado com amor e agrava-se quando é abandonado à solidão” .
A Comissão Diocesana Justiça e Paz é um organismo católico laical, que nos Açores é presidida pelo professor Aurélio da Fonseca e assistida espiritualmente pelo padre José Júlio Rocha, doutor em Teologia Moral.