Pelo Pe. Hélder Miranda Alexandre, doutor em Direito Canónico
Superadas as “batalhas” pelo aborto e por outras questões éticas, parece que a despenalização da eutanásia se tornou a nova “vítima” do debate político. A questão da terminologia não é clara, quer para o público, quer para os especialistas médicos, políticos, juristas, moralistas ou religiosos. Deixando de lado certas confusões, o panorama pode ser mais claro se se entende a eutanásia como “ação ou omissão que por sua intenção e natureza causa a morte, numa situação de doença grave e irreversível”. A questão pode ser muito confusa se se colocarem no mesmo patamar as leis acerca do testamento vital, leis que atribuem a decisão a um representante legal, leis que qualificam um homicídio por piedade ou compaixão, ou um sistema em que se estabelecem diferenças não na classificação, mas no plano da sentença judicial. No plano prático, a decisão é verdadeiramente difícil, quando envolve proximidade.
Comecemos por uma base comum. A Constituição da República Portuguesa, no artigo 24.º, acerca do direito à vida afirma: “1. A vida humana é inviolável. 2. Em caso algum haverá pena de morte”, e o artigo 25.º, acerca do direito à integridade pessoal, afirma: “1. A integridade moral e física das pessoas é inviolável. 2. Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos.”
Partindo deste texto fundamental, a eutanásia está claramente contra os princípios transcritos.
Para poder compreender a posição da Igreja Católica em relação a esta matéria, há que considerar primeiramente que o Direito Canónico se funda no direito divino (a que não recorro neste texto) e no direito natural, que o direito positivo historiza e socializa, através da atual legislação, que impede o homicídio, apesar de não fazer referência explícita à eutanásia.
Por isso, essa base comum a todos os homens, na qualidade de “dar a cada um o que é seu”, impede que se retire a vida a alguém. O direito à vida é um princípio universal, que ultrapassa qualquer condição social e cultural. Aliás, a conquista realizada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, na sequência do que tinha sido a segunda grande Guerra, constitui uma tentativa de transcrever para um texto aquilo que deve ser o direito natural, embora não o consiga plenamente, porque o direito natural é dinâmico.
O jurista italiano Natalino Irti defende uma tese com muitos adeptos -o niilismo jurídico – que consiste no princípio de que qualquer lei pode ser possível desde que se cumpram os requisitos democráticos. Serve-se da analogia de um tubo no qual pode passar qualquer líquido. Não interessam os princípios jusnaturalistas, ou de direito natural. A sociedade é soberana e decide segundo as regras que a mesma elabora e aceita. Por outras palavras, a lei é democrática, como se a verdade fosse democrática. Esta argumentação não tem em conta precisamente que não é a maioria que faz a verdade. A verdade é objetiva, existe por si mesma. Pode ser interpretada, mas não pode alterada pela vontade da maioria.
Na sociedade portuguesa temos assistido a esse modo de proceder. O parlamento determina questões que não deveriam depender dos critérios democráticos. A vida humana vale por si mesma e a sua defesa é um facto fundamental. Querer alterar esse dado é desvirtuar a natureza do direito positivo e da sua relação com o direito natural, cujo fundamento não depende da vontade da maioria. Por isso, se cai no contraditório da defesa da vida animal, e muito bem, mas não se tem o mesmo critério em relação ao direito à vida humana, como a eutanásia ou o aborto, e muito mal! Não seria muito mais digno tentar a humanização do cuidado do doente, em vez de pensar no seu fim? Ou será que a dignidade da pessoa humana e a sua liberdade estão acima da própria vida? Não quero entrar no domínio religioso, à luz do qual a questão é ainda mais dramática e menos consensual.