Pe Manuel Morujão orienta retiro de leigos em São Miguel
O ex secretário e porta voz da Conferência Episcopal Portuguesa, o Padre jesuíta Manuel Morujão, atual reitor da Comunidade da FacFil/AO, em Braga, está desde terça feira em Ponta Delgada, na ilha de São Miguel, a orientar um retiro de três dias para leigos, na sua esmagadora maioria ligados ao apostolado de oração.
Em entrevista ao Sítio Igreja Açores deixou algumas reflexões sobre o momento atual da Igreja diocesana, que deve fazer nesta fase de transição, “um renovado ato de fé e de esperança”; sobre a Europa “que não pode fechar-se sobre si mesma como se fosse um clube de ricos” e sobre o Pontificado de Francisco, ”uma bênção” que já deu frutos “que não voltam atrás”, porque o Papa foi capaz “de abrir os horizontes da prática pastoral”. Durante a entrevista fala, ainda, da tragédia humana provocada pelas migrações, sobretudo do Norte de África e Médio Oriente; da necessidade de recentrar as temáticas fundamentais em torno da Vida e da incapacidade dos decisores políticos em encontrar soluções humanas para a crise. Que é, sobretudo, de valores. A começar pela Vida, que continua a não ser respeitada.
Sítio Igreja Açores- Depois de amanhã realiza-se o debate em torno da iniciativa dos cidadãos “Pelo Direito a Nascer”. Que expetativa tem em relação ao debate?
Pe Manuel Morujão- A minha expetativa é que vença a vida, porque a vida é o grande património da humanidade. Os locais artísticos, materiais ou imateriais, como o Cante Alentejano, ou antes o Fado, centros históricos de cidade, tudo isso é uma maravilha. Mas, na base disso tudo, está a vida e essa é que é preciso favorecer. O sistema jurídico deve mostrar que a Vida é a prioridade das prioridades.
Sítio Igreja Açores- Não parece ser nesse sentido que vá o curso das coisas. Hoje valorizamos mais o ter que o ser. Logo valorizamos mais outros aspetos e menos a vida. O que é que nós cidadãos, cristãos, Igreja podemos fazer para influenciar de facto a valorização daquilo que é essencial?
Pe. Manuel Morujão- Um rio faz-se de gotas de água; um oceano de muitos rios. Perante a dificuldade dos tempos não devemos nem podemos desanimar. Deus sabe porque é que alguns tomam veredas não aconselháveis a propósito da vida. Sem os julgar, diria, que podem ganhar terreno se virem que estamos de braços cruzados, como que resignados à ideia que a vida não precisa ser bem tratada, como deve ser, porque é o valor essencial. Veja por exemplo o inverno demográfico, ou os subsídios para favorecer a não vida- o aborto(até parece difícil pronunciar a palavra e chamam-lhe interrupção)- e nós devemos lutar pela vida, não contra quem discorda, mas pela vida. No fundo é defender o que somos, o que queremos ser e o que queremos que sejam os nossos vindouros porque, no futuro, perguntar-nos-ão o que é que nós fizemos pela vida e nós deveremos responder que fizemos tudo o que era possível para a defender.
Sítio Igreja Açores- Mas a verdade é que não estamos a fazer tudo nem pela vida e muito menos pela sua dignidade. Veja-se o caso dos migrantes do Norte de África ou da Síria. A Europa alicerçada nos mais altos valores de defesa da dignidade humana dá-se ao luxo de construir muros para impedir a passagem destas pessoas que fogem dos seus países para fugirem à guerra; à fome e à morte…
Pe Manuel Morujão- É evidente que vale a pena lutar pela justiça e pela fraternidade. Mas não há vidas de primeira, segunda, terceira, ou vigésima sétima categoria. Há um autor francês que diz “felizmente para os pobres que há pobres”. A frase parece um contrassenso mas não é, porque são eles que estão mais disponíveis para abrir o seu coração ao outro, nomeadamente outros que ainda são mais pobres. Esta conceção de uma Europa amuralhada, como uma espécie de clube dos ricos e dos poderosos, é uma conceção de um paganismo atroz e anti fraternidade, que nos envergonha. Compreendo que seja difícil encontrar as soluções mais fáceis e mais eficazes, mas cruzar os braços significa desistir e podíamos ser nós a precisar dessa ajuda. Como é que alguém pode condenar ou considerar ilegítima uma fuga porque tem a guerra à frente, a falta de comida para alimentar a sua família, a ausência de futuro para os seus…como acontece por exemplo com mais de vintena de milhar de refugiados que se fizeram ao mare nostrum que se transformou no cemitério nostrum. Isso envergonha-nos, ofende-nos e deve ser uma causa primária de humanismo.
Sítio Igreja Açores- Quando olha para essas imagens, para aquilo que se está a passar na Grécia com um milhão de pobres em cerca de seis anos, o que é que lhe apetece dizer aos líderes europeus?
Pe Manuel Morujão- A mim vem-me um grito de Paulo VI, a 13 de maio de 1967: “Homens sede homens”. Não pediu generosidade, honestidade, fraternidade mas simplesmente o básico- sermos humanos uns para os outros. Não são qualidades extremas de vermos os outros mas sermos o que devemos ser. É este grito que deve fazer sobressaltar as consciências.
Até porque esse tal milhão de gregos poderíamos ser nós.
Sítio Igreja Açores- Os problemas são políticos. O povo vai sofrendo com este egoísmo dos decisores políticos…
Pe Manuel Morujão– O porta voz do Vaticano, na sala de imprensa- o Pe Lombardi- ainda hoje dava nota de que o Papa, além da solidariedade e da oração para com os gregos, pedia soluções responsáveis. O que exige um esforço de ambos os lados, isto é, da Europa, dos credores internacionais e da própria Grécia. Que eu saiba nem uns nem outros são surdos ou precisam de qualquer consulta médica da especialidade. O que precisam, isso sim, é duma afinação do coração, que tem de nos levar a soluções concretas, sem desculpas, sem alibis e sem apontar o dedo a ninguém. Será um bem chegar a conclusões; será um mal se isso não acontecer. Naturalmente que a sobranceria dos que estão por cima fá-los se calhar rirem -se de quem precisa; mas esse é um insulto desumano.
Sítio Igreja Açores- É verdade que o Papa tem denunciado. E que muitos aplaudem. Veja-se a Encíclica Laudato Si, que mereceu o elogio de grande parte dos líderes europeus e mundiais. A questão é que ouvem, aplaudem, mas depois fica tudo na mesma… é uma inevitabilidade que decorre do poder que têm?
Pe Manuel Morujão- As grandes causas da humanidade não se forjaram de um dia para o outro e a solidariedade não se inventa de um momento para o outro. Por isso, eu diria que há este caminho que tem de ser trilhado, despertando consciências para ver quem precisa de mim, porque só dando-me é que somos o que somos. Lembro-me de Santo Agostinho: Eu sou eu, mas não sou meu. Portanto, se eu não me dou e me fecho dentro da minha suficiência e importância, eu não me dou e estou mesmo a negar-me. Se eu não tiver esta capacidade de me dar perco alguma coisa de humano. Por isso, há que não desanimar, embora sejamos tentados a fazê-lo.
Sítio Igreja Açores- Já aqui se disse que o Papa não se cansa de denunciar. Ele tem sido, de resto, o grande protagonista da denuncia em instâncias, até que não era hábito ver o Papa, como por exemplo no Parlamento Europeu. Que avaliação faz deste pontificado?
Pe Manuel Morujão- É o Papa certo para a hora certa.
Sítio Igreja Açores- A ação e a iluminação do Espirito Santo…
Pe Manuel Morujão- Sim… o Espírito Santo não faz férias, nem greve e por isso atua sempre…com uma enorme atenção. Este Papa procura cumprir o que diz e o que defende, promovendo uma igreja em saída. E, que deve, segundo o seu neologismo, “primeiriar”, tomar a iniciativa. E, por isso, o seu discurso tem que entrar no campo sócio político. A Igreja não é igreja dentro dos quatro cantos de um templo, mas no terreno, contribuindo pela sua ação para um mundo melhor. Portanto, assumindo o momento histórico em que vivemos, a sua função tem sido despertar consciências para a necessidade de derrubar barreiras em nome de causas humanas que fraternizam a todos e não excluem ninguém. Tem sido uma ideia fixa feliz deste Papa: dar lugar a todos; abrir-se a todas as periferias; sairmos do centro onde estamos confortáveis e ir ao encontro do outro, sempre de olhos postos nos mais pobres. Não podemos ficar felizes por estarmos com os nossos apaniguados, aqueles que nos batem palmas e pensam como nós. O desafio é precisamente o contrário e, por isso, este Papa foi uma bênção. Aliás tem sido uma bênção ver este Papa a exortar-nos a olhar o outro, que pensa de maneira diferente, seja católico seja não católico, fora dos muros da igreja…
Sítio Igreja Açores- Uma bênção que tem por base um conteúdo programático e que resulta da escolha de São Francisco de Assis em vez do jesuíta São Francisco Xavier, por exemplo…
Pe Manuel Morujão– Ficou bonito ele assumir outro santo que não fosse Jesuíta. Por outro lado, ele foi exortado por um desafio do Cardeal Emérito de São Paulo que lhe disse “Jorge, lembra-te dos pobres”. Ele teve esta intuição de escolher um nome que nunca tinha sido escolhido (apesar de ser um Santo tão popular) e que mais do que um nome é um lema e um programa de pontificado, que tem a sua expressão maior nesta Encíclica que acaba de ser publicada, fortemente inspirada nesse Santo que olhou para a natureza como irmã. Aliás, esta Encíclica vai na linha da experiência de Francisco de Assis, na igreja nos arredores de Assis, São Damião, quando ouviu das palavras de Cristo no crucifixo: “Francisco reconstrói a minha igreja”. Portanto, não é só fazer umas pinturas para a Igreja ficar bonita mas de ver que há coisas estruturais a fazer na prática pastoral da igreja.
Sítio Igreja Açores- Esta exposição permanente do Santo Padre na comunicação social não poderá ser uma faca de dois gumes? Ou seja, tornar evidente uma discrepância entre um desejo do Papa, na linha de São Francisco, de “reconstruir” a igreja, adaptando-a ao seu tempo e a resistência de uma estrutura conservadora que anda geralmente a um ritmo mais lento do que a vontade do homem?
Pe Manuel Morujão- Respondo-lhe a isso desta forma, e se calhar os açorianos perceberão o que estou a dizer: o lugar mais seguro para um barco é o porto; mas o barco não foi feito para estar ancorado. Ele foi feito para navegar; navegando tem que arriscar ventos contrários e ondas impetuosas. A Igreja é igual. Não foi feita para ficar no Vaticano. Tudo vai andando mais ou menos, e aqui nos entendemos bem. Ora, a exposição do Papa é naturalmente uma faca de dois gumes; mas isso é um equilíbrio que embora difícil exige um alto nível. Eu não ando da mesma forma num vale ou numa montanha. Este Papa, segundo o seu carisma e a sua maneira de ser, arrisca a dar entrevistas, a fazer improvisações e comentários; mas as pessoas veem que é uma forma mais genuína de ser e de estar e não algo que, de vez em quando, aparece por detrás da cortina, num palco de onde profere uma palavra solene. Por isso, diria que é um risco que necessita de uma intuição e de uma maneira de ser que este Papa, indiscutivelmente, reúne.
Sítio Igreja Açores- Muitos dizem que este é um dos Papas mais políticos…
Pe Manuel Morujão– Eu acho que abriu uns horizontes da prática pastoral, da igreja e, concretamente, a maneira como está a exercer este pontificado faz com que, felizmente, já não se possa voltar atrás.
Sítio Igreja Açores- Não há perigo das veredas se encherem de ervas outra vez?
Pe Manuel Morujão– Haverá sempre tendências retrógradas, conservadoras, que quererão manter o máximo de solenidade pontifical, no máximo brilho… mas, sinceramente, não me parece que isso seja o mais parecido com a Gruta de Belém, com o Calvário ou com Nazaré. Por isso, os riscos que o Papa corre são apostólicos. Não ter coragem para arriscar em nenhuma frente é o pior risco que se pode correr, que é o risco da pusilanimidade, do medo e da insegurança. Ora, Cristo disse-nos que devíamos arriscar porque estará sempre connosco até ao fim dos tempos.
Sítio Igreja Açores- Conhece a Diocese de Angra. Vivemos um momento de transição nas palavras do Senhor Bispo, que é também uma oportunidade. Está na diocese a orientar um retiro de leigos, que mensagem deixa quer para estes quer para o clero?
Pe Manuel Morujão- Eu acho que devemos ver as coisas pelo positivo. Quando o vento sopra forte há uns que levantam muros e outros que constroem moinhos de vento, já diz a sabedoria oriental. Nestas situações em que a previsibilidade não é a do papel quadriculado; tudo claro no horizonte, é também um tempo de Graça e é um desafio que Deus nos faz como fez à Igreja de Pentecostes: é preciso levar a boa nova aos confins da terra. Perante aquilo que não é conhecido no amanhã da Igreja dos Açores há que fazer um renovado ato de fé e de esperança. Não somos uma empresa humana, meramente humana, em que nos regemos por sondagens mas em que contamos com o Espírito Santo que é fonte de criatividade.