Pelo padre José Júlio Rocha
A Igreja assemelha-se aos vitrais de uma catedral gótica em pleno dia. Vistos do lado de fora, parecem um obscuro emaranhado de vidros foscos e sujos. Só por dentro se pode contemplar o brilho e a beleza da arte medieval dos vitrais.
Vista por fora, a Igreja é uma estrutura supercomplexa, bimilenária, encarquilhada nos seus tradicionalismos e desadaptada do mundo. A sua história tem momentos obscuros e tristes, guerras intestinas, lutas de poder, as famosas Cruzadas, onde, em nome de Deus, se destruíam coisas e vidas; o período da Inquisição arrepia-nos os cabelos; a oposição ao progresso e à ciência também teve os seus pontos críticos, como o caso Galileu, o caso Darwin, o caso “Syllabus”; a Igreja parece estar sempre na ré da História.
Diz-se que a Igreja tem muito património, vindo do tempo do poder humano, templos magníficos, tesouros de arte inigualáveis, coisas que destoam da voz de Jesus, que tantas vezes apelou à pobreza interior. E, no entanto, a historieta da galinha dos ovos de ouro é um princípio universal…
Diz-se que a Igreja e o sexo quase nunca se deram bem, sendo essa matéria um autêntico elefante na loja de porcelanas da moral católica. Não acompanhou os tempos, foi demasiado castradora, decretou um rigorismo quase desumano aos fiéis. Num mundo que aceita e acolhe todas as vivências LGBTQI+, onde é que cabe a voz da Igreja? Pense-se em todas as chamadas questões fraturantes, desde o aborto à eutanásia, desde o casamento entre pessoas do mesmo sexo até à comunhão de recasados, a panóplia é ampla.
E o papel da mulher na Igreja, desde sempre secundário e alternativo, sem acesso aos lugares de decisão, elas que constituem a esmagadora maioria dos praticantes?
E os padres? Um inquérito feito em Espanha difundia que, a seguir aos políticos, os padres eram a “classe social” mais detestada… Porquê? Porque fazem como frei Tomás, pregam e não falam, porque muitos vivem uma vida regalada e não servem devidamente a Igreja e o povo de Deus, porque são demasiado conservadores, porque desdenham o mundo da cultura, da arte, dos pobres, porque são uns inúteis parasitas sociais.
Acrescente-se a tremida relação da Igreja com o vil dinheiro, todas as dúvidas que se puseram sobre o Bando do Vaticano e as manigâncias que por ali se fizeram, a opulência das vestes sumptuosas, das alfaias douradas, dos rituais onde quase sempre brilha o ouro.
E, corolário estrondoso, a temível hecatombe do abuso de menores… nem precisa dizer mais.
No Diário Insular, alguém publicou, aqui há uns anos, num texto, a seguinte assertividade: “A Igreja Católica é patética. É como uma grande besta ferida, que escoiceia para todos os lados nos estertores da morte, cega a tudo. Apesar de, na minha perspetiva, à falta de explicações racionais, todas as religiões, na sua essência, serem sistemas místicos efabulatórios, vejo a mensagem cristã primitiva como positiva, baseada no amor incondicional, tolerância, perdão, partilha e dádiva. É incrível que a Igreja Católica a tenha conseguido transformar na grandessíssima porcaria que é hoje, um lodaçal tóxico e perigoso que mistura a pura e estéril ortodoxia, preconceito, fanatismo, castração psicológica, misoginia estúpida, raivosa, teimosa, estagnação intelectual e espiritual, doutrinação absurda, violência, convencionalismo retrógrado, criminalidade bestial e cumplicidade nojenta.” Olhar a catedral sem nela entrar dá nisto…
E, no entanto, apesar do que se diz e do que, dolorosamente, constatamos, reduzir a Igreja aos seus erros é um erro ainda maior. Se cada um de nós pensasse que é Igreja, que o centro daquilo a que chamamos Igreja está no nosso coração, se cada um de nós – e não apenas padres, bispos e papas – fôssemos Igreja, então a catedral, vista por dentro, teria também a beleza inconfundível dos vitrais. Se olharmos bem para a essência da Igreja, para além das parangonas dos noticiários, das opiniões públicas e dos disparates nas redes sociais, encontramos uma Igreja cuja essência reside no Amor, na constatação de que vale a pena seguir Jesus, no facto inquestionável de que, no silêncio dos momentos e dos lugares que não aparecem em público, há um espantoso manancial de bem que se faz, na lógica evangélica da mão direita que faz o que a outra mão não sabe.
Foi esta beleza que encontrei na homilia da entrada de Dom Armando Esteves Domingues na nossa Diocese. “Venho até vós muito livre como sempre fui, de mim mesmo, de bens, de lugares, títulos ou cargos.” É esse o seu espírito: conhecer, escutar, empenhar-se. Dom Armando fala-nos de três prioridades no início do seu múnus pastoral. Duas têm a lógica do tempo e da oportunidade: o Sínodo Universal da Igreja e os jovens que se preparam para a Jornada Mundial da Juventude. A outra prioridade até pode parecer um vago propósito mas é bem mais do que isso: acolher e valorizar as pessoas. Escolher a proximidade é uma atitude de fundo, não um ornamento de aparência, na lógica de que a forma é tão importante como o conteúdo. Dom Armando ainda está há demasiado pouco tempo e prognósticos só no fim do jogo. Mas essa atitude já é, por si só, um programa: “Gostaria de poder exercer um ministério aberto: a minha porta, a comunicação e o coração estarão sempre abertos para todos. […] Que não se diga que o bispo está muito ocupado.” A porta está aberta.
Não alimento esperanças vãs. Nem vale a pena exaltarmos as espectativas ao ponto de imaginarmos todos os problemas resolvidos. Agora, uma coisa é certa: precisamos da esperança como do pão para a boca; precisamos de alguém – um irmão, um guia, um condutor – com quem nos sintamos ao lado no caminho; precisamos de espírito e de alento. Às vezes basta uma presença, uma porta sempre aberta.
Esse caminho já começou. Não há como parar. O resto, seja o que Deus quiser.
*O texto foi publicado esta sexta-feira no jornal Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.