A esperança é perigosa, disse ele

Dorsal Atlântica

Pelo Padre José Júlio Rocha

Foto: Igreja Açores/Arquivo

Vamos simplificar: esperança é a atitude de confiar em algo ou alguém que me vai trazer um bem. Estarei melhor no futuro, porque, se espero, é porque ainda não estou bem como gostaria de estar. É nesta simples definição que Maria Zambrano, filósofa espanhola, se apoiou para falar da esperança como último refúgio. Quanto piores forem as condições de uma pessoa, de um povo, mais urgente se torna a esperança; quando o nosso bem, o bem almejado, não depende de nós, então a esperança visita-nos e é a última a morrer. Testemunho disso são figuras como Edith Stein, Viktor Frankl, Anne Frank, Primo Levi, Etty Hillesum. O que é que estas personagens têm em comum? O terem vivido em campos de concentração nazis. E querem saber uma coisa? Ninguém como eles fala de esperança. Leiam Stein, Frankl, Hillesum e outros e vejam como a esperança é uma flor, a única flor no mundo, capaz de manter vivo quem já não tem outras razões para viver.

A esperança nasce do fundo. Como cantava o incondicional Fabrizio de Andrè, dos diamantes nada nasce, do lodo nascem as flores. Podemos então afirmar que quanto mais satisfeito está um povo ou um indivíduo, menos precisa da esperança; quanto mais precária é a sua situação, mais a esperança se torna necessária. É talvez preciso acrescentar que o objeto da esperança se encontra fora de nós, porque a esperança só acontece quando já pouco podemos fazer de nós: é em algo ou alguém que se encontra a nossa esperança. Tiremos como exemplo o povo bíblico de Israel que, quando a fome, a guerra, a doença chegavam tanto mais esperavam num messias que os viesse salvar; nos tempos de prosperidade normalmente esqueciam o messias.

Presumo que seja, talvez, a falta de esperança que determina a queda de um povo, de uma pessoa. Tomemos, a título de exemplo, o esplendor e a queda do Império Romano. Começaram por lutar contra os etruscos, os sabinos e outros, construindo uma civilização que, inundada pela sabedoria e arte gregas, construiu, sob o domínio de líderes fortes, uma civilização como uma dimensão nunca antes vista. Depois da vitória sobre os cartagineses o Império atingiu o seu auge. Já pouco havia a conquistar, os inimigos habitavam a barbárie, bem longe da península itálica e Roma atingiu um esplendor único. Os seus habitantes – não os escravos mas os patrícios – já não precisavam de esperar mais nada porque tinham tudo. Riquezas incomensuráveis vinham das províncias que as legiões dominavam e chagavam a Roma e esta abarrotava de luxo e arrogância. Já tinham tudo, esperar o quê? E porque o homem é, por natureza, um animal sempre insatisfeito, em vez de ter esperança, os romanos começaram a exigir, cada vez mais, conforto e prazeres. É assim que se chega à primeira sociedade “woke” da nossa civilização: a política do “pão e circo”. O povo romano tinha tudo o que queria: pão gratuito, festas de arromba gratuitas, desde os espetáculos cada vez mais bárbaros nos anfiteatros romanos até aos banhos públicos, às orgias a Baco, à depravação moral quase absoluta a que Roma chegou. É nessa sociedade opulenta que aparecem líderes tão abstrusos como Nero, que incendiou Roma, ao que parece, por um capricho, ou Calígula, tão alucinado que elevou o seu cavalo a senador do Império. Porque é que uma sociedade tão opulenta como a romana consegue líderes tão lunáticos e tresloucados? Porque foram eles que prometeram tudo e mais alguma coisa ao povo, o povo via-os como deuses ou semi, e esse povo permitia-lhes todas as loucuras desde que estivesse de barriga cheia. Digamos que o “pão e circo” foi também uma estratégia genial para manter o povo completamente alienado dos assuntos que interessavam aos políticos. O que aconteceu foi que as legiões romanas, a lutar e a morrer nas fronteiras do Império, se fartaram de o fazer só para que a grande metrópole gozasse de uma vida de libertinagem e depravação. O Império ainda estava no seu auge quando começou a desabar, porque desabaram os seus valores mais importantes, nomeadamente a esperança. E, calmamente, o Império começou a implodir.

É verdadeiro este silogismo: tempos difíceis geram homens fortes; homens fortes geram tempos de prosperidade; tempos de prosperidade geram homens fracos; homens fracos geram tempos difíceis. Estamos nos tempos de prosperidade e a gerar homens fracos. É isto que vivemos hoje e o fenómeno “woke”, para mim, não é mais do que o elogio da fragilidade. No meu tempo não havia dia em que não houvesse uns sopapos ou uns socos no intervalo da escola. Hoje o miúdo deprime porque o professor criticou o seu corte de cabelo. Começou o nosso “pão e circo” e começou precisamente no ponto em que os direitos do indivíduo se tornaram absolutos e os deveres pouco pertinentes e sancionados apenas pela lei e não pela consciência. Mas o fenómeno “woke” é apenas uma pequena parte das transformações sociais a que assistimos, neste auge da civilização ocidental, impregnada de tecnologias assombrosas e gente a morrer à porta das periferias. Não há esperança, há desencanto e frustração. E a frustração não é apanágio dos pobres. Numa civilização onde os ricos estão dispostos a fazer tudo pelos pobres menos descer das suas costas, são exatamente os ricos que se sentem frustrados. Os pobres, esses estão lutando pela sua sobrevivência enquanto os outros se frustram porque o seu “pão e circo” é ameaçado pela periferia. Isto é uma nesga do retrato do mundo.

É neste clima que aparecem os tais líderes insanos e alucinados como Nero e Calígula.

A esperança, esta mãe de tantos outros valores, ficará para os próximos capítulos da História. Será bem precisa.

 

*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular

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