Pelo padre Marco Sérgio Tavares
Nesta passada semana, depois de ter assistido a um profundo, difícil, nada acessível, mas excelente debate televisivo sobre a função e a presença excessiva ou não do Estado em Portugal, veio-me à mente a frase de Cristo: «dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus». (Mc 12, 17) A memória não é ingénua. Advém depois de uma conversa onde se disse que os Bispos e a Conferência Episcopal Portuguesa têm sido muito brandos, obedientes e até subservientes no trato, intervenção e respostas à Pandemia que atravessamos, bem como na denúncia do que fere o Humano, antes do Religioso.
A Democracia, como se sabe, nasceu na terra da Filosofia, nas cidades-estado da Antiga Bela Grécia. Por seu turno, a Religião Cristã, nasceu na Cruz, embora o grego também seja uma língua bíblica. Gostando-se ou não a política veio para ficar, quer em formas democráticas de esquerdas, centros e direitas, ou até nas monarquias, nas ditaduras e na corrupção. A política veio para ficar, as democracias, e os atentados a ela. A própria Igreja chamou-a de “arte nobre” porque a Igreja também tem a sua “política”.
Os tempos que vivemos levam-nos a deduzir que mais cedo ou mais tarde acontecerá uma refundação do político e uma crise (já visível) do religioso. Temos muito ou pouco Estado? Temos muito ou pouco Religioso? Este espaço é exíguo para dois barris de pólvora, mas façamos um exercício de lucidez mais próximo…
No retângulo continental, já antes da desculpa diária do Covid, havíamos assistido a julgamentos, crucifixões e sangrias… nacionalizações ou vendas a preço de saldo da TAP, CTT, Energia, Saúde e até da Educação. As nomeações, os jeitos, as sucessões dinásticas, até chegarmos à atualidade, onde as preocupações com as crises levam ao desnorte do não controlo do sector privado que detém as patentes das vacinas, libertando-as a conta gotas aos governos e estes a darem migalhas de vacinas às ultraperiferias. Estamos perante um convite à democracia da paciência. Acredito que a discussão daqui a uns anos deslocar-se-á para uma revolução copérnica que abandonará os conceitos de privado/público para Comum. Tardará, mas provavelmente chegará.
Tomás Halík (um teólogo que não tardará Padre da Igreja) convidou-nos no ano passado e neste a lermos O tempo das Igrejas vazias. Na política e na Religião o convite é à miragem da oportunidade a que este tempo nos conduz. Não sabemos se a Imunidade levará a mais Humanidade. Mas estamos em plena democracia da paciência também no religioso. A água benta foi “substituída” pelo desinfetante; a presença pela distância; a relação pelo afastamento e a celebração comunitária presencial pelos mais variados círculos e circos, com acrobacias litúrgicas que até impedem a celebração do Lava-Pés – o evangélico gesto joanino da Eucaristia.
A Bíblia definiu dois eventos fundantes: a Páscoa para os judeus e a Páscoa para os cristãos. Neles está a Paciência de Deus em ação: acompanha, faz levantar, passa e ressuscita. A Páscoa não é uma revolução, nem sequer uma inversão de papéis que uma certa onda teológica tem tentado imprimir. A Igreja precisa de pegar na mão de Jesus e não o contrário. Imannuel Kant, numa obra de difícil leitura, a propósito do Povo de Deus, escreveu: “(…) uma comunidade ética considerada como Igreja, i.e., como simples representante de um Estado de Deus, não tem em rigor, nenhuma constituição análoga, quanto aos seus princípios, à constituição política. Tal constituição não é nela nem monárquica (sob um Papa ou Patriarca), nem aristocrática (sob Bispos e Prelados), nem democrática (como de iluminados sectários). Quando muito, poderia ainda comparar-se a uma comunidade doméstica (família) sob um pai moral comunitário, embora invisível, enquanto o seu filho santo, que conhece a sua vontade e, ao mesmo tempo,
está em parentesco de sangue com todos os seus membros, ocupa o seu lugar de maneira a tornar conhecida mais em pormenor a sua vontade àqueles que, por isso, nele honram o pai e deste modo regressam uns com os outros numa voluntária, universal e duradoira união de coração.” (A Religião nos limites da simples razão, 1793).
Haja paciência para a Política e que a Igreja volte a ser a Família da Paciência, livre das políticas mundanas.