O Pe Ricardo Tavares é o novo Diretor do Serviço Diocesano da Pastoral da Cultura, na Diocese de Angra
Natural de Vila Franca do Campo, na Ilha de São Miguel, onde nasceu há 41 anos, o Pe Ricardo Tavares foi ordenado presbítero na Praia do Norte, na Ilha do Faial, em 1999, com o lema “Toda a nossa glória está na Cruz de nosso Senhor Jesus Cristo” (cf. Gálatas 6:14). A procura do conhecimento, dizem os que lhe são mais chegados, é porventura a sua maior virtude. É licenciado em Engenharia Electrotécnica e de Computadores (Bolonha) pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, na área das Energias, e em Teologia (pré-Bolonha) pela Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, com uma tese em Cristologia Kenótica.
Foi Bolseiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, fez estudos pós-graduais em Arqueologia e Literaturas Antigas (Árabe, Siríaco, Hieróglifos Egípcios e Copta) na faculdade dominicana École Biblique et Archéologique Française de Jérusalem, em Israel, e em Filologia Bíblica (Hebraico, Aramaico, Grego e Latim) na faculdade jesuíta Philosophisch-Theologische Hochschule Sankt Georgen em Frankfurt, na qual obteve, em 2007, o grau de doutoramento em Teologia, na especialidade de Exegese Bíblica.
Foi professor de Teologia e Sagrada Escritura na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, no Porto e em Braga, e investigador do Centro de Estudos do Pensamento Português na mesma Universidade. Deu um curso de História Pré-clássica (Egiptologia) na Universidade dos Açores.
Trabalhou nas Dioceses de Angra, Porto e Algarve, Limburgo e Mogúncia, na Alemanha. Atualmente é professor de Educação Moral e Religiosa Católica na Escola Básica Integrada da Lagoa e Diretor do Serviço Diocesano da Pastoral da Cultura dos Açores, desde julho deste ano. De resto, o Pe Ricardo Tavares regressou à diocese apenas há dois anos.
Questionado pelo Sítio Igreja Açores sobre a necessidade do diálogo permanente da igreja com o mundo através da cultura, o sacerdote diz que “a fé e a religião são, na sua raiz, fenómenos criativos, manifestando-se sobretudo nas obras de arte”. Atento ao que o rodeia, nesta sociedade veloz, desdramatiza lembrando que “oimediato faz parte da existência. A vida é breve, imediata. Deus experimenta-se no imediato do instante”. Sobre a resposta que a Igreja deve dar a este ritmo avassalador sublinha que a primeira coisa que tem de fazer é “saber em “quem” e em “que” acredita”. Por isso, os agentes de pastoral têm de ter “conhecimento suficiente e personalizado da Sagrada Escritura e do património intelectual e espiritual da Igreja, sintetizado no Catecismo da Igreja Católica”.
Numa diocese fortemente marcada pela Religiosidade Popular reconhece que sem ela, se calhar “haveria menos cristãos nas ilhas”.
Sítio Igreja Açores- A Diocese de Angra é fortemente atravessada pela religiosidade popular, que muitas vezes se reduz à etnografia. Como se pode vencer o desafio de alterar esta situação, em diálogo com as populações?
Pe Ricardo Tavares– A etnografia é o registo dos povos, um museu vivo. Se não fosse a religiosidade popular, fruto da evangelização das massas, provavelmente o número de cristãos hoje fosse muitíssimo mais reduzido. Foi graças à inculturação da fé na sociedade que o fogo do sagrado se manteve vivo; sem ela, a liturgia oficial teria permanecido muito mais fria e pobre. O caminho não passa por destruir ou até ignorar a religiosidade popular; a via correta já foi mostrada por Jesus: no meio do povo! O cristianismo não pertence a grupos de elite. Isso não impede a criação de círculos de formação profunda para alguns leigos; mas estes terão como missão o esclarecimento religioso de quem participa nos fenómenos religiosos populares.
Sítio Igreja Açores- Foi nomeado diretor diocesano da Pastoral da Cultura. Vai coordenar uma equipa que está em formação. Que planos tem para o serviço?
Pe Ricardo Tavares- Não tenho planos, nem os membros que transitaram da anterior equipa os têm ainda. Pretende-se entrar num novo ciclo. A única referência que nos orienta é o último documento universal sobre o assunto, as orientações do Pontifício Conselho para a Cultura (Para uma Pastoral da Cultura, 1999). De acordo com a experiência realizada em outros países, a Pastoral da Cultura terá de passar por “Agentes da Pastoral da Cultura”, ministros e leigos, formados no “diálogo” conhecido como “inculturação da fé”, para inspirar as outras formas da pastoral (familiar, catequética, juvenil, social, escolar e universitária…).
Sítio Igreja Açores- Na carta que escreveu aos seus colegas sacerdotes adotou uma atitude de escuta, para colher sugestões. Que feedback já teve?
Pe Ricardo Tavares- A carta foi enviada aos colegas sacerdotes e aos conselhos pastorais, com o objetivo de os consultar para as temáticas e os formatos a assumir. Já recebemos algumas respostas e confesso que fiquei positivamente surpreendido com as opções tomadas. Sem escuta, a pastoral não consegue deitar raízes.
Sítio Igreja Açores- Hoje, cada vez mais, diz-se que a Igreja deve dialogar com o mundo… através da cultura. O que é que isto quer dizer realmente?
Pe Ricardo Tavares- O ser humano é um ente cultivado. Não existe no estado físico ou metafísico puro. O mistério da vida, lançado na pessoa humana pelo Espírito de Deus (as Sementes do Verbo) ou pela Evangelização (a pregação explícita), germina e cria no ser humano uma única realidade humano-transcendente, sob a forma de cultura, como em Cristo se encontram em harmonia as naturezas humana e a divina. Portanto, sem a contemplação da cultura, seja ela qual for, é impossível compreender a ação misteriosa de Deus na vida humana e cuidar dela.
Sítio Igreja Açores- A cultura é um elo entre mundos aparentemente impossíveis de serem ligados: fé e criatividade, religião e arte?
Pe Ricardo Tavares- Toda a cultura, popular ou erudita, resulta de um processo de equilíbrio do ser humano consigo mesmo, com os pares e com o cosmos, integrando o mistério que ele intui. Toda a forma de cultura exprime o desejo de o ser humano se superar e auto-transcender; portanto, a cultura é essencialmente uma ação sagrada, que espelha a fé da pessoa humana no facto de o mistério da existência conduzir a vida para patamares de qualidade superior. A arte, enquanto atitude humana criadora, é implícita ou explicitamente uma forma de se religar ao Espírito Criador, um modo de religião. Portanto, corretamente entendidas, a fé e a religião são, na sua raiz, fenómenos criativos, manifestando-se sobretudo nas obras de arte. Não é por acaso que os mistérios religiosos tenham sido apresentados de formas infinitas e originais, culturais e artísticas, ao longo dos séculos. Há dimensão humana mais inspiradora do que a religião?
Sítio Igreja Açores- Muitas vezes cultura é sinónimo de distração: ir a eventos culturais. Mas a cultura é muito mais do que isso. Hoje a produção cultural está muito virada para o imediato. Qual deve ser a nossa atitude para com esta sociedade que nos cansa, pelo seu ritmo e pela sua capacidade de se auto destruir?
Pe Ricardo Tavares– Numa cultura agrícola tudo é relativamente imediato. O agricultor semeia, planta, deixa crescer, colhe, e vende ou consome. É “difícil” produzir num ano alhos suficientes para serem consumidos ao longo da vida. O imediato faz parte da existência. A vida é breve, imediata. Deus experimenta-se no imediato do instante. A Eucaristia dominical é um evento que nos cultiva; remete-nos para o imediato do domingo, dia de lazer e descanso. A cultura é a matriz onde estamos envolvidos e que também podemos marcar. Os eventos são sempre imediatos e visam infundir nos participantes uma luz orientadora para os momentos da quotidiana monotonia. É sempre possível injetar qualidade nesses eventos; mas também é importante levar de cada um deles uma centelha de arte, para nos cultivarmos. O sábio encontra sabedoria em todo o lado.
Sítio Igreja Açores- Como é que a Igreja deve falar para os não crentes e para os atordoados com este ritmo?
Pe Ricardo Tavares- Primeiro, a Igreja tem de saber em “quem” e em “que” acredita. É impossível fazer uma pastoral frutífera se os agentes de pastoral não têm conhecimento suficiente e personalizado da Sagrada Escritura e do património intelectual e espiritual da Igreja, sintetizado no Catecismo da Igreja Católica. Sem esse saber corre-se o risco de aceitar o que não deve ser aceite e de condenar o que não deve ser condenado. Como poderemos detetar os sinais da Sabedoria de Deus nas formas culturais contemporâneas, mesmo as aparentemente aberrantes e ateias, se não temos um conhecimento sério e vivido dessa sabedoria? É que tudo o que o ser humano diz e faz, mesmo que atordoado pelo enigma do mal, se encontra cunhado pelo Divino. Somos imagem e semelhança de Deus, habitáculos vivos do seu Espírito! Deus dá-se a conhecer tanto na brisa de Elias como na tempestade do Pentecostes.
Sítio Igreja Açores- Como se integra a cultura popular de forma a que ela mantenha a matriz cristã e teológica e não se fique apenas pelos fenómenos, em cada momento e em cada contexto?
Pe Ricardo Tavares- A cultura popular, nomeadamente a cristã, já constitui uma modalidade institucionalizada de vivência do religioso, em formação e aperfeiçoamento no tempo e nas respetivas condições sócio geográficas. Mesmo que usada para fins que lhe são extrínsecos (políticos, económicos, particulares…), a cultura religiosa popular é um campo sagrado que exprime e toca os que nela se envolvem. Na pastoral paroquial que moderei, nunca vi recusadas as minhas propostas de formação aos agentes da religiosidade popular, especialmente dos Impérios do Espírito Santo; é necessário esclarecer o mistério que é celebrado. Por outro lado, a Igreja encontra nestas festas um modelo de vivência cristã que, como nenhum outro, marca toda a existência e mobiliza famílias inteiras.
Sítio Igreja Açores- A Diocese de Angra é fortemente atravessada pela religiosidade popular, que muitas vezes se reduz à etnografia. Como se pode vencer o desafio de alterar esta situação, em diálogo com as populações?
Pe Ricardo Tavares– A etnografia é o registo dos povos, um museu vivo. Se não fosse a religiosidade popular, fruto da evangelização das massas, provavelmente o número de cristãos hoje fosse muitíssimo mais reduzido. Foi graças à inculturação da fé na sociedade que o fogo do sagrado se manteve vivo; sem ela, a liturgia oficial teria permanecido muito mais fria e pobre. O caminho não passa por destruir ou até ignorar a religiosidade popular; a via correta já foi mostrada por Jesus: no meio do povo! O cristianismo não pertence a grupos de elite. Isso não impede a criação de círculos de formação profunda para alguns leigos; mas estes terão como missão o esclarecimento religioso de quem participa nos fenómenos religiosos populares.
Sítio Igreja Açores- Hoje, como já disse, a cultura é muito “fast food”. Os fenómenos aparecem, transformam-se em epifenómenos mas, também, facilmente desaparecem. Que papel deve ter a igreja nesta engrenagem veloz?
Pe Ricardo Tavares- Em cada época surgem novos fenómenos culturais, que aparentemente desaparecem, mas deixam um marco, uma submemória, potenciando novos fenómenos. Eles manifestam o rio subterrâneo de uma evolução incompreensível aos olhos humanos, fruto da liberdade humana e da acção invisível do Espírito Santo nos corações e no cosmos. Não devemos ter medo! Todas as formas de cultura ou mesmo de subcultura revelam os gritos mais profundos do espírito humano, uma carência não resolvida, uma capacidade inédita a ser assumida, o despertar de crisálida que deixa o casulo e inaugura uma nova etapa. Jesus Cristo, constituído pela ressurreição juiz dos vivos e dos mortos, é, contra todas as aparências, o Senhor da História. A inteligência da fé ensina que ele tem o mundo na mão.
Sítio Igreja Açores- Há espaço para Deus nesta cultura do efémero?
Pe Ricardo Tavares- Sim, há. Deus fez-se efémero. Entrou no espaço, fez-se homem e cultivou o efémero com sentido. E tornou-se a grande efeméride da História.