Pelo padre Hélder Miranda Alexandre
O Livro VI do Código de Direito Canónico, dedicado às sanções penais da Igreja, foi recentemente reformado pelo Papa Francisco, através da Constituição Apostólica Pascite Gregem Dei, de 23 de Maio de 2021. Se por um lado, os escândalos urgiram uma reorganização da normativa eclesial, por outro lado, as alterações legislativas tornaram o presente código obsoleto.
Pode parecer incompreensível que existam leis penais, numa Igreja em que se deve testemunhar o amor, o perdão e a caridade. Contudo, a fragilidade humana, marcada pelo pecado e pelo delito, força a autoridade a corrigir os fiéis e reparar os danos causados. Não se pode admitir uma pastoral sem justiça, assim como não se pode apelar à bondade se não se dá a cada um o que é seu. Há erros que não passam com o tempo.
O pecado permanece na comunidade cristã, e esta não pode ser conivente com situações graves. Por isso, a finalidade do sistema penal é essencialmente um ato de caridade pastoral, que procura a reintegração da justiça, a correção do delituoso e a reparação do escândalo. Esta última finalidade não é simplesmente uma defesa do bom nome da Igreja, mas a perturbação que certos delitos podem causar nos membros mais frágeis da comunidade cristã.
O atual texto começou a ser elaborado em 2007, por ordem de Bento XVI. O estudo foi realizado em espírito de “colegialidade e cooperação”, com ajuda de especialistas e de pastores: Conferências Episcopais, Dicastérios da Cúria Romana, Superiores Maiores de Institutos Religiosos, faculdades de Direito Canónico e outros institutos eclesiásticos.
A intenção da reforma é clara: que o exercício da caridade não exclua a disciplina sancionatória. O Papa Francisco di-lo claramente: “a negligência de um Pastor a recorrer ao sistema penal torna manifesto que ele não cumpre reta e fielmente a sua função”. A experiência dura e ferida do abuso de menores é exemplo disso meso. As normas promulgadas incluem as de delicta graviora (2001 e 2010) e o Motu Proprio Vos estis lux mundi. Por isso, o código encontrava-se incompleto e inadequado para certas espécies de facto. No entanto, as normas só entram em vigor a 8 de Dezembro de 2021, mediante a publicação no Osservatore Romano e depois na Acta Apostolica Sedis.
Reformularam-se alguns critérios gerais, não muito claros na legislação de 1983. É de particular interesse que os pastores usem de caridade pastoral, exemplo de vida, através do conselho e exortação, antes da aplicação da pena, se necessário (can. 1311). Acentua-se o princípio de inocência do réu (can. 1321). O legislador inferior (como os bispos diocesanos) pode munir de uma côngrua pena ou juntar outras à legislação universal (can. 1315 §1). Precisa-se a prescrição dos delitos. Evidencia-se o princípio de proporcionalidade para aplicação de sanções (can. 1349). As mudanças procuram equilibrar as finalidades da pena: conversão do réu, reparação do dano e prevenção do escândalo.
Os delitos, já emanados pela Santa Sé, foram incluídos: ordenação de mulheres, em que se proíbe não só quem as ordena, mas também as que recebem a ordenação de modo inválido (can. 1379 §3). No âmbito sacramental, proíbe-se a dádiva de um sacramento a quem é proibido de o receber (can. 1379 §4), a consagração com finalidade sacrílega (can. 1382 §2), a communicatio in sacris (can. 1381), a receção e difusão do conteúdo da confissão através dos meios informáticos (can. 1386 §3). Inseriu-se também a violação do segredo pontifício (can. 1371 §4), o abandono ilegítimo do ministério (can. 1392), a pedo-pornografia (can. 1398 §1, 3.º) e a omissão da denúncia (can. 1371 §6). Foi introduzida a penalização de um clérigo que use de violência, ameaças ou abuso de autoridade para cometer delitos contra o sexto mandamento (cn. 1395, §3). Penaliza-se o acesso às ordens sacras com irregularidade escondida (can. 1388 §2) ou o superior que não cumpre uma sentença executiva (can. 1371 §5). Desapareceu a transferência penal de lugar, de modo a evitar que seja usada como solução para casos graves (can. 1336).
Finalmente, deu-se particular realce aos delitos de dimensão económica. Determinam-se as penalizações e a obrigação de reparação dos danos causados para os delitos de subtração de bens eclesiásticos ou a alienação e administração de bens sem as devidas licenças (can. 1376).
Segundo os especialistas, trata-se de uma alteração muito necessária, mas o trabalho não termina. O direito penal tem uma especificidade que deve ser assimilada lentamente, mas exige coragem no momento da decisão. A falta de vigilância ou a inatividade da autoridade podem ser profundamente danosas para a comunidade cristã.
*O padre Hélder Miranda Alexandre é doutor em Direito Canónico e Reitor do Seminário Episcopal de Angra.