Pelo padre José Júlio Rocha
Naquele tempo, Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou-Lhe: «Se meu irmão me ofender, quantas vezes deverei perdoar-lhe? Até sete vezes?». Jesus respondeu: «Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete.» (Mt 18, 21-22)
No próximo domingo, quem for à missa ou ler a liturgia da palavra daquele dia, vai dar de caras com este texto. De bom grado resgaríamos meia dúzia de páginas incómodas dos Evangelhos e a nossa fé seria um caminho bem mais fácil. Esta é uma daquelas páginas incómodas.
Os códigos de justiça e perdão são antigos nas civilizações orientais. A Bíblia, no Génesis, refere a existência de uma lei de vingança: se alguém me prejudicar ou prejudicar o meu clã, eu tenho o direito de me vingar sete vezes (reparem na insistência do número sete).
O Código de Hamurabi vem trazer-nos a lei conhecida como de Talião: “olho por olho, dente por dente”, uma espécie de regra de ouro que, ainda hoje, é aplicada em moldes modernos na justiça.
Moisés vem trazer ao Povo de Deus o critério do perdão ao próximo, e o perdão, a partir daí, passa a fazer parte dos códigos de conduta religiosos.
No tempo de Jesus, os rabis e as escolas rabínicas discutiam um tema bastante debatido: até quantas vezes era tolerável perdoar o próximo. Os mais rigoristas afirmavam que só se podia perdoar uma vez. Havia também a escola intermédia, que pregava o perdão duas vezes. Os mais benignos afirmavam que se poderia chegar a perdoar três vezes ao próximo.
É neste clima que Pedro se aproxima de Jesus e lhe faz a pergunta. Para Pedro, Jesus é o suprassumo da bondade e do amor. Ele tem a certeza de que Jesus ordenará que se perdoe mais do que três vezes. Talvez quatro, talvez cinco. Mas estica a corda o máximo que pode, regressando ao número sete, não já da vingança mas do perdão. Espera que Jesus lhe diga não até sete vezes mas até umas quatro ou cinco.
A resposta de Jesus é arrasadora: não sete, não setenta, nem sequer quatrocentos e noventa. Jesus quer dizer “sempre”. Perdoa sempre.
O perdão é a forma mais lógica de praticar o amor. Todos precisamos perdoar e ser perdoados todos os dias, a todas as horas, em milhares de circunstâncias.
Presumo que um dos maiores pecados da história do cristianismo foi o de não ter apostado todas as moedas na ética do perdão, como Jesus ensinou bastas vezes. Se tivéssemos sido fiéis a estes ensinamentos de Jesus, se tivéssemos, ao longo de dois mil anos, ensinado os nossos filhos a perdoar, das duas, uma: ou já não havia cristianismo, porque seríamos dizimados pelos “inimigos”, ou o mundo seria bem diferente, porque, como dizia Dostoievski, quando se perdoa um inimigo, o inimigo deixa de ser inimigo. Acredito na segunda hipótese.
Há poucas capacidades mais poderosas no mundo do que o poder de perdoar. Mas se olharmos para a vida social, em todas as suas dimensões, e dando primazia à vida política, presumo que ainda não passámos da Lei de Talião, para não dizer que estamos a regressar depressa à lei da vingança sete vezes.
Conta um livro infantil que havia um menino quadrado que brincava no recreio com meninos redondos. Mas a porta da sala de aulas era redonda e o menino quadrado não podia entrar. Então os outros meninos decidiram cortar as arestas do menino quadrado para que ele pudesse entrar. Mas o menino quadrado começou a chorar: cortar-lhe as arestas acabaria por matá-lo. Então os outros meninos decidiram cortar a porta de maneira a que o menino quadrado pudesse entrar. Afinal, aceitar a pessoa diferente é só saber como abrir a porta.
Leiam os Evangelhos!
*Este texto está publicado na edição desta sexta-feira no Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio