Por Tomaz Dentinho
Este ano levei a Páscoa mais a sério. A romaria era recente, a perplexidade da vida pedia a aproximação ao Mistério de Cristo e as restrições de todos nós dificultavam umas férias ou uma Páscoa mais longínqua. De há muitos anos lembrava a procissão das matracas de sexta-feira Santa, a abertura dos véus que tapavam as capelas laterais e do jantar grande de Domingo de Páscoa que uma lógica ao mesmo tempo judaica e cristã das famílias de província preenche num bloco de espaço e de tempo especial que se prolonga por um picnic na segunda-feira junto a um qualquer rio que na Primavera ainda leva água para um barco passear. De há menos anos recordo umas férias em Cuba onde um padre de coragem condenava a morte de presos políticos. Mas, como me leva a dizer quem me ensina não tenho saudades dessas memórias porque o que me interessa é o dia de hoje e eventualmente o que aprendi de então.
É nos “hojes” destes dias que me interessa falar para que guarde, pense e me comprometa com essa memória boa das horas da Páscoa. Não fui a todas mas estive lá na procissão de sexta-feira e, já na Sé, escutei com atenção o repto claro do Padre Júlio Rocha que me chamou para um abraço do outro lado da rua; alegria simpática esta de um abraço chamado do outro lado da rua vindo do orador da coragem na Páscoa dos Açores. Também vi de sofá a bênção do Papa Francisco que nos lembrou a geografia do sofrimento – na Síria, no Iraque, no Iémen, no Quénia e na Ucrânia – sobre a qual deveríamos sentir alguma culpa; ou não deixámos passar aqui os aviões que mudaram o Iraque sem evitarem a sua destruição? Ou não temos connosco milhares de imigrantes da Ucrânia?
Dos pregadores desta Páscoa retirei alguns ensinamentos. Do Padre Júlio Rocha aprendi que para entrar no Mistério é preciso não ter medo da realidade e que acreditar que o Reino de Deus é só no outro mundo é uma forma de ateísmo. Do Papa Francisco retive que para sermos humildes é preciso humilharmo-nos e que para respeitar é preciso perdoar. E dos textos do Evangelho aprendi que, para reconhecer Jesus hoje em cada próximo, convém percebermos as dúvidas de Maria Madalena que pensou que Ele era um jardineiro, de Cléofas de Emaús que O tomou por um caminhante, dos discípulos que pensaram que não comia e de Tomé que pensava que não tinha feridas.
Não ter medo é essencial. Não ter medo que o Reino de Deus começa aqui e agora. É com essa confiança com que nascemos e somos formados junto dos nossos pais e amigos, mais pelo testemunho dos seus gestos de amor e coragem de todos os dias do que pelos dizeres das suas falas, que essas são tendencialmente mais medrosas e por isso mais medíocres e por vezes mais maldosas. E para não ter medo da realidade é preciso entendê-la e amá-la. Só que não conseguimos entendê-la sem Deus que completa, complementa e, em função dos gestos, acaba por fundamentar a razão, marcar o coração e abrir o entendimento.
A humilhação e o perdão, como gestos constituintes da humildade e do amor, são um pouco mais estranhos mas ganham todo o sentido quando associados à coragem testemunhada pelo Papa Francisco de não ter medo. Não me humilho e perdoo por medo mas por coragem. E tomando o exemplo da vida de Cristo e dos Santos esses momentos de coragem, humilhação e perdão só surgem na busca do real: muitas vezes falhamos como Pedro e a humilhação passa pelo arrependimento e o perdão; outras vezes em que nos humilhamos e perdoamos ficamos apenas com Nosso Senhor mas temos a certeza que também fica nos outros. A maior parte das vezes estamos distraídos mas a vida vem ter connosco; palavra!