Por Pe António Rego
Até que um acontecimento de carácter local ou planetário ganhe maior relevo mediático com tom de tragédia ou estilo de folhetim, não sairá das nossas mentes e do nosso coração toda a sequência do voo 4U9525 da companhia Germanwings. Começou instantaneamente pelo fim, logo que aconteceu. Foi notícia por todas as redações: caiu um avião nos Alpes, não há sobreviventes. E a partir desse irremediável começa toda a operação de recuo para entender os sinais, os porquês, o erro – se for humano; a falha – se for técnica. E começou outro folhetim com largas dissertações sobre aviões, o lugar “sagrado” do cockpit, a missão soberana do comandante, a porta que se fecha para os supostos ou reais agressores vindos de fora – da cabine, esquecendo-se todos que o criminoso pode estar no “santo dos santos” onde se deposita o segredo de dezenas ou centenas de vidas que um gigante tubo de compostos metálicos transporta, sustentado por duas extensas asas. Possivelmente tenho mais horas de voo que o copiloto dessa última viagem para centena e meia de pessoas. Basta ir várias vezes a Macau, à Índia, à China ou a Timor para contar algumas centenas de horas.
Mas tudo isto não passa de uma divagação que as imagens e declarações dos vivos foram sugerindo, sendo possível que haja dados novos com o passar do tempo. Até aqui imperou a pressa com que se procuraram explicações para esclarecimento dos vivos, em particular dos familiares das vítimas.
Nunca sabemos quando entramos na última viagem. Num dia novo, ao atravessar uma rua, entrar num carro, num barco, num comboio, num avião. Ou quando o coração se recusa ao batimento indispensável para que a vida circule, a respiração aconteça e sejamos reconhecidos como seres vivos. Anotei que a caixa negra registou os 10 minutos de respiração do copiloto e ofereceu, assim, uma prova de que se manteve vivo até ao fim. Possivelmente aparecerão outros dados que clarificarão melhor o grau e o ritmo de respiração que acompanham situações diferentes das pessoas. Mas isso compete aos peritos que têm de facultar elementos plausíveis aos corações feridos dos familiares e a muitos assustados que vão continuar a voar como se nada tivesse acontecido. É assim que a vida acontece e prossegue.
Não entrei neste circuito temático por acaso. Neste tempo de Quaresma, em retiros e reflexões em que tenho participado, em intervenções que preparo com silêncio e oração vejo Jesus a falar, ouvir e rezar com o espectro da morte muito próximo. Com todos os sinais vindos de longe nas citações de Jeremias ou Isaías que Lhe diziam respeito, no cerco dos seus inimigos que cada dia mais se vai apertando com o apoio das autoridades civis, militares e religiosas, com uma angústia mortal de solidão e de aparente indiferença do próprio Deus. O Filho de Deus entrou neste nosso veículo que é a vida que termina com morte. Longa, breve, natural, provocada. Lembro o salmo 39 : “De poucos palmos fizeste os meus dias; diante de ti a minha existência é como nada; o homem não é mais que um sopro”. Jesus fez parte da nossa viagem. Porque se fez um de nós e abraçou por inteiro a nossa condição. Foi isso que nos valeu. Porque foi mínima a distância entre morte e ressurreição. Porque garantiu a nossa ressurreição. Porque semeou a esperança no coração de todas as nossas angústias. Foi por nós que tudo isso se passou. Por isso os acontecimentos de vida ou de morte que nos atravessam não são fruto apenas de erro humano ou falha técnica. Acabam sempre em vida. Aí só chegamos pela nossa fé.