Lembro-me de ter sido convidado por Monsenhor Lopes daCruz, fundador da Renascença, para acompanhar o Secretariado do Cinema e da Rádio que precedeu o atual secretariado das Comunicações.
Foi um verdadeiro achado. Como foi o Cine Club Católico que muito bom cinema ofereceu com as célebres sessões matinais, ao domingo, no Cinema S. Jorge. Além de estreias e projeções proporcionava debates entre cinéfilos de várias idades, culturas, credos e proveniências. Era uma escola. Por sua vez o Secretariado, composto por cerca de uma vintena de leigos voluntários, fazia a crítica dos cerca de 350 filmes estreados anualmente em Portugal. Daí nasceu um boletim cinematográfico simples que trazia o argumento, a temática e a ficha técnica de cada filme, com uma pequena crítica aos aspetos estéticos e éticos de cada obra. Muito aprendi com essa escola além de ter criado amizades profundas com realizadores, jornalistas e críticos da área. A revista FILME terá sido o expoente maior desse trabalho e um sinal vivo à sociedade de que a Igreja não temia refletir as temáticas e debates que atravessavam a Sétima Arte.
Não ia começar esta conversa por aqui mas pela paixão que fui tomando pela imagem a preto e branco, possuidora dum fascínio e eloquência a que a cor não acrescentou muito. O tratamento da luz num fotograma a preto e branco continua a ter um tom de mistério que o tratamento da cor, em muitos momentos devassa a densidade e transcendência da imagem quando materializa em excesso as personagens que trata. Mas isso é outro tema que não tem a discussão fechada. Eu próprio, mesmo no religioso, trabalhei durante muito tempo a imagem a preto e branco e por isso fazia muito menos imagens para demoradamente dar muito mais tempo a cada cena. O mesmo se passou com a televisão.
Estou a lembrar-me dum pintor, de nome Augusto Doré, desenhador e ilustrador do século XIX, nascido em Estrasburgo, um recontador de histórias a preto e branco. Percorreu as grandes cenas dos grandes espetáculos literários de Balzac, Rabelais, Dante, Edgar Alan Poe e tantos outros. A sua ilustração, a gravura finamente desenhada, era “outra obra” que prolongava arrojadamente as palavras, num espetáculo extasiante de festa e tragédia, banda desenhada duma banda sonora de texto de excelência como são as grandes obras dos grandes mestres. Até que chegou vez da Bíblia. Doré, antes de desenhar, percorre os lugares santos e preocupa-se com os espaços em que ocorrem as grandes cenas bíblicas. E em linhas finas e sóbrias, em 241 ilustrações , descreve o essencial do Antigo e Novo Testamento. E aí está a sua arte. Na visão do divino, na harmonia da palavra com a imagem, nos diversos planos de profundidade e luz em que se dizem e escutam palavras, nos espaços precisos em que as personagens se movimentam, na harmonia das linhas, na monumentalidade dos palácios faraónicos ou na simplicidade do monte das bem-aventuranças.
Por ter estado a filmar cada uma das páginas – não há texto, apenas legendas das gravuras A4 – apercebi-me da perfeição da linhas, do rigor do esquadro que não deixou escorregar um perfil, nem criar choque entre verticais e horizontais e com uma criatividade esmagadora ao propor o ângulo e o espaço, o enquadramento e a profundidade de cada cena, com a sua dose certa de luz, foco e profundidade de planos. Cada cena bíblica tem em Doré um ‘decor’ certíssimo sem gongorismo nem ornamentos de ruído.
Não me era estranha esta preciosa obra. Foi o meu primeiro catecismo. Vi a criação do mundo, a luz, Caim e Abel, as grandes cenas do antigo e Novo Testamento. E com um cuidado muito grande em descalçar as sandálias nos terrenos delicados do sagrado. Lembrei-me da minha infância ao rever numa livraria de Roma, com outros olhos, esta obra, que curiosamente foi prefaciada por Franco Ravasi que, entre outras coisas, conta que Cecile B. Mille lá se inspirou antes de produzir o filme “Os Dez Mandamentos’. Que nem mesmo na sua cor e monumentalidade deixou de me despertar a nostalgia pelo fascínio da cor em preto e branco.
Pe.António Rego