Francisco e todas as flores do mundo

Pelo Padre José Júlio Rocha

Foto: Igreja Açores/CR

Acendi a televisão naquele 28 de março de 2013, o Papa Francisco tinha sido eleito quinze dias antes. O que vi impressionou-me. Era o primeiro grande gesto profético do Papa. Era quinta-feira Santa e Francisco dirigira-se a uma casa de reclusão de menores. O ecrã transmitia o momento em que ele se ajoelhava diante de doze jovens, entre eles raparigas e muçulmanos, e lhes lavava os pés. Hoje até estávamos tão habituados a estes gestos do Papa que quase nos pareceria despercebido, tal é a inexorável lei da entropia dos sentimentos: acostumamo-nos tanto a factos extraordinários que eles passam a ser normais. Mas, naquele dia, o gesto foi surpreendente e programático: estávamos diante de um Papa que vinha para servir, a começar pelos últimos. A Igreja precisava abrir, outra vez, as portas, nem que isso custasse o que, realmente, viria a custar. Era a primeira grande mensagem do Papa para dentro da Igreja.

A oito de julho, o Papa mostrava ao mundo inteiro as suas intenções: a sua primeira viagem não foi ao encontro de nenhuma multidão. Viajou até Lampedusa, a pequena ilha italiana do mediterrâneo, lugar dramático aonde acostavam milhares e migrantes e refugiados, e aí advertiu o mundo para o drama das migrações que começava a alastrar e os países ainda assobiavam para o lado. E marcou bem a sua posição, como não podia deixar de ser, a favor dos últimos.

Crítico da autorreferencialidade, Francisco pugnou por uma Igreja menos eclesiocêntrica e mais cristocêntrica, isto é, Jesus é a razão de ser da Igreja, a referência absoluta, é Jesus que está no centro, não a Igreja. E não é por acaso que a parábola preferida do Papa era a do Bom Samaritano, metáfora de uma “Igreja samaritana”, peregrina, nómada, que prefere sujar os pés na lama onde vivem os pobres do que se manter imaculada e fechada em si mesma. É por isso que a expressão “que os padres tenham o cheiro das ovelhas” causou tanto impacto.

A sua autobiografia, “Esperança”, mais do que uma história pessoal, é a biografia do seu pensamento, um livro que aconselho vivamente a ler, use quisermos ter uma visão sistemática e concertada das suas ideias fundamentais. A nove de março, quatro dias antes da sua eleição, Bergoglio fez um discurso aos cardeais que terá influído na sua escolha como Papa. A essência dessa mensagem estava na ideia de uma Igreja evangelizadora: uma Igreja em saída. Toda a “revolução” do Papa Francisco se resume a esta expressão: “Igreja em saída”. Ser “hospital de campanha”, Igreja pobre com os pobres”, Jesus está dentro da Igreja e bate à porta, por dentro, porque o Seu lugar é junto dos homens e das mulheres, há “periferias existenciais” à espera da Igreja.

O desassossego que Francisco trouxe para dentro da Igreja incomodou… e de que maneira! Aos primeiros embates, muitos começaram a torcer o nariz: era um Papa popularucho, deixávamos de ouvir Mozart (Bento XVI) para escutar Quim Barreiros (Francisco), critica demasiado os padres e a Igreja, em vez de apontar o dedo ao mundo, está a desestabilizar a Igreja em questões próximas do dogma, desvaloriza a hierarquia da Igreja em prol do Povo, a abertura às periferias da Igreja, como os homossexuais, os recasados, o abraço às outras religiões, principalmente Islão e Judaísmo, tudo isso e muito mais gerou um conflito patente dentro da Igreja, com vozes autorizadas a confrontarem o Pontífice como há muitos anos não acontecia. Chegaram a chamá-lo antipapa. Nada que o incomodasse. Francisco sempre foi um adversário daquilo que ele considerava um “mundanismo da Igreja”, que se manifestava sobretudo nas liturgias pomposas e faustas, com roupas e paramentos “de marca”, uma vaidade que Bergoglio sempre denunciou.

Partiu o Papa Francisco, depois de uma vida de luta em que, muitas vezes, talvez demasiadas, se sentiu só. “Esta economia mata” e “a guerra é o maior fracasso da humanidade” são mensagens que, sob pena de um destino trágico para o Planeta, o mundo tem que ouvir e aceitar. Morreu o homem do sorriso completo, morreu o profeta da esperança.

Francisco não foi só pum pontífice: foi um sorriso, uma carícia, uma voz, a alegria descarada de viver, uma mão estendida, um olhar de misericórdia, uma porta aberta a todos. Foi, tão simplesmente, a última voz dos últimos.

Tenho a certeza de que o mundo se tornou mais escuro, eu, que, naquele dia 20 de novembro de 2026, depois da missa de encerramento do ano da Misericórdia, corri meia praça de São Pedro para me encontrar diante de um homem vestido de branco, um sorriso branco e solar como o que vestia. E, naquele momento, com os olhos em lágrimas e sem sentir os pés no chão, vi em Francisco toda a esperança do mundo: “Todos, todos, todos”, proclamou, várias vezes, durante a Jornada Mundial da Juventude. Sim. Exatamente como Jesus.

Essa esperança terá novo alento com o próximo Papa.

 

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