A zona nordeste da ilha Terceira não é apenas uma planície com algumas povoações, rodeada de mar e serra por quase todos os lados.
O Ramo Grande é mais do que um lugar. É uma espécie de microclima humano, uma unidade cultural mais ou menos única no espaço dos Açores. É uma planície fértil. E o lugar mais fértil dessa planície – que a meados do século passado ondeava de searas – foi ocupado pelo aeroporto e pela Base das Lajes. O Ramo Grande tem uma arquitectura própria, pontilhada de casas arejadas e grandes, tectos de quatro águas, janelas e portas abauladas e orgulhosos balcões que olham o caminho (onde, por vezes, dançam toiros) com um orgulho senhoril. Tem uma raça de gado autóctone, o gado do Ramo Grande, as nossas vacas vermelhas, ou os bois de carga, bondosos gigantes de olhos meigos, que puxam meio mundo pelo outro meio mundo fora, com a facilidade de quem levanta uma pena de ganso. É lá que o Espírito Santo tem das mais belas manifestações de fé e cultura, festa genuína e sã, com bodos cheios de gente e pão, a derramar alegria nas praças com carros de bois rendilhados de acolhimento. A tradição gastronómica é também um marco indelével, desde as alcatras às sopas do Espírito Santo, a doçaria e as festas à volta da mesa, que são sempre o remate gourmet da nossa terra.
Foi aí que eu nasci. Uma espécie de ambiente mágico, com primos em todas as freguesias, que íamos visitar pelas festas e encontrávamos as portas sempre abertas. A minha infância vive ao lado dos aviões americanos. Eu e meu irmão corríamos até à colina da matriz da Praia e, sentados naquele muro alto, dardejávamos o céu com os olhos, a ver passar aqueles mamarrachos cinzentos ou pardos, que ronronavam pela ilha dentro. A cereja no topo do bolo era o C 5, que chamávamos terceirensemente o “Galaza”, porque, se bem me lembro, tinha Galaxy no nome comprido. Era, antes dos Antonov, o maior avião do mundo. Ainda vinha no horizonte e já o seu rugido inigualável de metal a trepidar se fazia sentir pela praia quase toda. E com olhos de quem via um bocadinho de Deus, olhávamos o céu a deixar passar aquele monstro que, como o tubarão de Jaws por debaixo do barco, rasava lento e magnânimo pelo céu, duas centenas de metros acima das nossas cabeças, já com as suas 28 rodas em riste para suportar aqueles 75 metros de mundo com mais de cem toneladas.
Foi também por causa dos americanos que nós começámos a ver televisão e a aprender inglês mais cedo: ao sábado lá ia com o meu irmão a casa de uma vizinha cujo marido trabalhava na base e tinha um televisor, para ver os macaquinhos, entre os quais um tal de “sembel dezena” – hoje mais conhecido como Sinbad the Sailor – que apanhava raios com as mãos e os restituía ao céu. E comíamos as “rambegas” e a “pinabara”, com goladas de coca-cola, à altura ainda água suja do imperialismo americano.
Fomos privilegiados. Não era necessário que ficássemos agora reduzidos a esta espécie de prenúncio de miséria a que – parece – estamos destinados. Os americanos, como se sabe, são os eucaliptos do mundo: afincam-se, criam raízes, e depois da terra chupada, vão-se embora sem sequer ensaiar cerimónia. Há cidades inteiras nos Estados Unidos reduzidas, sem dó e com muito pouca piedade, a cemitérios de gente viva, falidas até ao osso, com gente a arrastar-se na marginalidade ou nas pensões de pobreza. Foram cidades de sonho. Acabou-se. O capitalismo não é muito melhor que uma tragedia grega, uma venda da alma a Mefistófeles: enquanto dás, fuma o charuto da abundância; quando acabaste de dar, procura as beatas que deixaste no chão. Não há nada a fazer.
Acrescente-se a crise da lavoura com o fim das quotas leiteiras, a ambiguidade das políticas das pescas, o desperdício desabalado de oportunidades para o turismo e temos a introdução a um futuro que ninguém queria para o altivo Ramo Grande. Amianto incluído.
Este é um momento solene para a Igreja se colocar exactamente onde deve ser: ao lado de quem vai ficar atrás, perdido nos enredos desse turbilhão gerado pelos deuses que destinam, mais ou menos a seu bel-prazer, o futuro dos filhos dos outros.
Eu acho que o Ramo Grande, o seu povo e os seus dirigentes, não têm vocação para baixar os braços.
Pe Júlio Rocha