Ele há pequenos gestos

Pelo padre José Júlio Rocha

Foto: Igreja Açores/CR

No Seminário Menor, princípios dos anos oitenta, saíamos a passear só às quartas e aos domingos. Não podíamos passear sozinhos. Saíamos então em grupos de três, quatro ou cinco. Menos de três era de menos, mais de cinco era demais. Não podíamos ir ao cinema nem entrar em cafés. Passeávamos pela Avenida, pela doca, íamos ao museu Carlos Machado, andávamos pelas ruas estreitas de Ponta Delgada, podíamos ir ver futebol ao Jácome Correia ou ao Estádio, e eu adorava ver o Lusitânia dar pancadaria no Santa Clara e no União Micaelense e no Oliveirense da Fajã de Cima. Outros tempos…

Naquela altura e naquela idade, vivia-se uma espécie de lei da selva. Éramos quarenta e tal seminaristas, entre os 10 e os 16 anos, mais coisa menos coisa, umas idades bem difíceis de manejar. Era a idade da identificação pessoal, das amizades eternas, das hormonas em ebulição, de observar as raparigas no calçadão da Avenida como quem observa aves raras, que éramos de carne e osso e não anjos, como alguns pensam. Era a idade de seguir os machos-alfa, os dominadores, de enjeitar os débeis, uma idade difícil como acontece com todos os adolescentes.

O Dionísio (nome fictício) estava condenado a ficar para trás. Com umas mãos desajeitadas na ponta de uns braços compridos e magros, umas pernas longas, terminadas nuns pés desconformes. Era feio. Uns olhos grandes de amêndoa, tristes e profundos, encostados a um nariz meio torcido, torcida ligeiramente a boca, um andar desengraçado. Ninguém queria sair com ele a passear. Quase só servia para nos rirmos dele, que aquela idade dá muito para nos apoiarmos em cima dos fracos para parecermos fortes. Era um “bulling” dissimulado e devastador. Os olhos do Dionísio eram os mais tristes, inocentes e sofridos de todo o Seminário. Bem me recordo de o ver, várias vezes, depois do almoço, a mendigar a um e a outro o favor de poder sair a passear com eles, bem me recordo das negas que levava, acompanhadas das desculpas mais indesculpáveis, tais como “já somos cinco”, “arranja outros”, “o grupo está fechado”. E o Dionísio cirandava triste entre uns e outros, mendigo de amizade, de carinho, enjeitado. Não sei quantas vezes ficou em casa sozinho, por não ter quem quisesse sair com ele. As crianças e os adolescentes são, às vezes, ferozes.

Por mais de uma vez, nestas e noutras circunstâncias, vi o Dionísio fazer caretas para não chorar, assim como as crianças fazem biquinhos. E foi num domingo solar de primavera que, ao entrar no coro alto da belíssima capela do Seminário, o encontrei sentado, a cara entre as mãos. Estava a chorar. Sentei-me ao seu lado e perguntei-lhe porquê. Disse-me: “não é nada”. E era tudo. Naquela carcaça feia de 13 ou 14 anos morava uma alma que sofria em silêncio sem nunca se queixar. Apeteceu-me dar-lhe um daqueles abraços doces e apertados, ser a sua alma gémea, conhecer a profundidade do seu sofrimento, entrar na sua solidão, ser o seu maior amigo. Convidei-o a sair comigo, só nós os dois, à revelia das regras da casa. Ele não queria, era proibido. Mas eu convenci-o e fomos passear para a zona de São Gonçalo, aonde ninguém ia passear. Falou-me da sua família; do pai que fora sapateiro e sempre pobre, e agora trabalhava num dos melhores restaurantes da ilha, apesar de ganhar muito pouco; dos cinco irmãos e ele era o mais velho; da mãe ainda nova e já doente. Com uma voz timbrada entre frango e galo, o Dionísio parecia um italiano, porque falava mais com as mãos dos que com a boca. Tornámo-nos os melhores amigos e, claro, começámos a ser objeto de gozo.

O padre Laudalino, prefeito, chamou-me, numa segunda-feira, ao seu gabinete. Ser chamado ao gabinete do perfeito era sempre motivo de preocupação, de medo. “Já ouvi dizer duas vezes que tu e o Dionísio andam a sair sozinhos. Não sabes eu isso é proibido?” Enchi-me de coragem: “E o senhor ainda não reparou que ninguém quer sair com o Dionísio?” “Reparei. Mas não faças mais isso. Não se pode fazer.”

Mas era no campo de futebol que o Dionísio se transformava no bombo da festa. Tinha dois pés esquerdos e era verdadeiramente risível. Desajeitado nas suas pernas longas, raramente acertava na bola, apesar de se empenhar desesperadamente no jogo. Tudo lhe saia errado, era sempre o último a ser escolhido e quem ficasse com ele tinha todas as hipóteses de perder. Punham-no sempre à avançada e ninguém mais se lembrava dele, ninguém lhe passava a bola. Nessa altura, já eu gostava de jogar à baliza.

Tudo aconteceu no lapso de um segundo. A bola veio de um pontapé de canto, junto ao limite da grande área. Dionísio atira-se à bola. Por milagre a bola acerta-lhe em cheio no pé. Saiu um remate forte. Na minha cabeça tudo ficou claro. Tinha a possibilidade de agarrar a bola. Atirei-me com algum espalhafato, fingi que escorregava e deixei a bola entrar. Era o 4-3 para a equipa do Dionísio. E enquanto os meus colegas de equipa protestavam comigo pelo frango que levara, eu, encostado ao poste, quase chorava de alegria ao ver o Dionísio correr desesperadamente feliz para o meio campo, era o seu primeiro golo, era a vitória da sua equipa, era os colegas a correr atrás dele para o abraçar e era eu, ali, sentado, embevecido com aquele momento de glória do Dionísio.

Ele há pequenos gestos.

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