O último Papa moderado?

Por Carmo Rodeia

Foto: Vatican News

O Papa Francisco está há mais de duas semanas internado no Hospital Universitário Gemelli, em Roma, na última semana com um boletim clínico reservado. A idade e as doenças crónicas de que padece são naturalmente motivo de sobra para todos os cuidados e atenção. Desde esta segunda-feira, dia 24, os “sinos” tocaram e todos os cardeais residentes em Roma, responsáveis e funcionários dos diferentes dicastérios, e todo o Povo de Deus em geral, foram convidados a rezar pelo Papa na praça de São Pedro. Rezarão o Rosário todos os dias, às 21h00, 19h00, dos Açores.

O poder da oração é para os fiéis inesgotável e por isso são criadas as correntes que se têm formado para pedir a ajuda de Deus nas melhoras do Papa. Os romeiros de São Miguel, entre as 12 intenções que levam no seu percurso de 8 dias de retiro espiritual, têm à cabeça também esse pedido feito pelo bispo de Angra,  para que rezem pela saúde do Papa.

Na mensagem para esta Quaresma, cujo início o poderá apanhar ainda no hospital, dado que não se sabe quando terá alta ou se o seu quadro clínico se complicará de um momento para o outro,  apesar das ligeiras melhoras que vão sendo reveladas, Francisco reflete sobre a morte e a ressurreição, convidando os católicos a uma atitude de esperança e à “confiança em Deus e na sua grande promessa, a vida eterna”.

“Jesus, nosso amor e nossa esperança, ressuscitou e, vivo, reina glorioso. A morte foi transformada em vitória e aqui reside a fé e a grande esperança dos cristãos: na ressurreição de Cristo”, escreve Francisco, numa mensagem que tem como tema ‘Caminhemos juntos na esperança’, cá em baixo e até à vida eterna, qual promessa central na nossa fé.

Em 2019, quando ainda nem sequer sonhávamos com a pandemia, que nos haveria de arrancar para uma realidade totalmente diferente da que tínhamos vivido até então, Francisco falava-nos da morte como um abraço de Deus, a ser vivido com esperança. E lembrava-nos uma questão que me tem assolado estes dias e que nos une a todos: a vulnerabilidade. Somos iguais na vulnerabilidade. Até o Papa!

A ilusão de que somos eternos, e até indispensáveis, é uma moda dos nossos dias que esconde a possibilidade do sofrimento e nos remete para uma ilusão que nos faz sofrer muito mais do que a morte,  porque não nos preparamos para ela, alertava então o Papa.

A certeza da morte, ao invés, está escrita na Bíblia e no Evangelho, mas o Senhor apresenta-la  como um “encontro com Ele” e está acompanhada pela palavra “esperança”. E não se trata de um aviso fúnebre. É simplesmente Evangelho, é simplesmente vida, é simplesmente dizer um ao outro: somos todos vulneráveis ​​e todos temos uma porta à qual o Senhor um dia baterá, recordava-nos Francisco nessa homilia proferida em Santa Marta, em vésperas da Quaresma.

É necessário, portanto, prepararmo-nos bem para o momento em que a campainha tocará, o momento em que o Senhor baterá à nossa porta. E não nos resta mais do que rezar uns pelos outros, neste caso rezarmos juntos pelo nosso Papa.

Olhando para este tema da morte, percebemos como Francisco foi e é inovador. É talvez de todos os papas o que mais vezes falou deste assunto com a abertura e a naturalidade que deve acompanhar a vida de qualquer cristão: a esperança de viver com o Senhor aqui e depois viver com o Senhor do outro lado.

A batalha que trava agora não há de ser muito diferente de outras, que o próprio conta na sua auto biografia intitulada “Esperança”, em que recua ao momento em que, com apenas 21 anos, foi forçado a retirar parte de um pulmão. Francisco conta detalhadamente o sofrimento que então viveu, com toda a naturalidade e quis que tudo isso fosse do conhecimento público antes da sua morte, como se só encarando esta etapa da vida pudéssemos vivê-la sem medo e sem amarras.

Esta lucidez de Francisco acompanhou todo o seu pontificado. Há um mês atrás ouvi da boca de D. José Tolentino Mendonça, no encontro que teve com os jornalistas portugueses que se deslocaram a Roma para viver o primeiro Jubileu temático de todos os jubileus que o Papa quis colocar este ano na agenda, que Francisco era o Papa que tinha conseguido abrir corações que estavam fechados à Igreja.

Não tenho qualquer dúvida que será lembrado como o Papa que deu uma segunda oportunidade à instituição. Pelos seus pronunciamentos, pelas cartas encíclicas que escreveu desde a Evangelii Guadium à Fratelli Tutti; sobretudo, pela tentativa constante de sintonizar a Igreja no hoje do mundo, essa intuição tão desafiadoramente recuperada pelos padres do Concílio Vaticano II.

Este é, porventura, o maior legado de Francisco e a sinodalidade, palavra que entrou definitivamente no léxico da Igreja,  de que ele é o principal inspirador, não é mais do que isto: ouvir todos, os que estão dentro e fora da Igreja, porque todos somos irmãos e fazemos parte do mesmo mundo; pensar em conjunto a melhor maneira de nos entendermos porque todos, independentemente das nossas circunstâncias somos criaturas, filhos do mesmo Deus; promover as reformas que adequem a missão da Igreja no mundo de hoje, tendo sempre como matriz o evangelho de Jesus, porque foi essa a missão que Jesus nos confiou…

Muitos estarão a fazer contas a este pontificado, olhando para ele numa lógica de perdas e ganhos de progressistas e conservadores, numa dicotomia que fará pouco sentido para o que importa: que Igreja podemos ser diante dos desafios que o mundo nos coloca, para melhor podermos anunciar a salvação.

Foi o que Jesus fez no seu tempo diante de uma igreja presa ao poder, às tradições, ao medo e ao imobilismo. Não confundamos por isso reforma, que faz parte da vida, com progressismo ou conservadorismo.

Francisco veio de um mundo onde o pragmatismo por vezes se impõe como uma espécie de receita para a sobrevivência. Um mundo pobre, esmagado pelo poder de uns quantos sobre todos os outros. Trouxe para a Europa uma ideia de Igreja simples e pobre.

Num mundo cada vez mais polarizado, são estes homens moderados que fazem a diferença, ainda que tantas vezes incompreendidos, pelos extremos da vida.

Rezemos pela sua saúde.

(Este artigo foi publicado também no Jornal Correio dos Açores)

Scroll to Top