A violência da Paz

Por Francisco Maduro Dias

Maduro Dias, presidente da Comissão Diocesana Justiça e Paz

Terminamos o ano de 2024 mergulhados num cenário de força, de guerra, de sentimentos de impotências perante o que s passa à nossa volta. Onde está a Paz?

Estranho? Talvez nem tanto.

Em boa verdade, os últimos 70 anos de suposta paz, pelo menos na Europa, foram um caso à parte, na longa e repetida sequência de conflitos que qualquer aficionado da História encontrará em lista detalhada, se procurar nas enciclopédias escritas ou, na maior delas, a Internet.

É ver como, desde o império romano, por exemplo, não há um qualquer espaço de cerca de 50 anos sem uma grossa refrega a incendiar a Europa. A guerra dos 100 anos, que durou 100 em longa duração e por isso se chama assim, é um bom exemplo do que refiro, marcada por três períodos de combate aberto, separados por momentos de acalmia.

Em tempos recentes decidimos acreditar que bastava não produzir brinquedos de guerra, proibir as cenas de violência, alterar os contos para crianças, enfim, descrever e inculcar na cabeça dos mais jovens que o mundo é fofinho, para que a guerra desparecesse da face da Terra. Engano puro, como se vê.

O que me interessa trazer aqui, hoje, porém, não é nem a velhíssima frase “se queres a paz prepara a guerra”, que não deixa de ser uma sólida verdade, nem a teoria que atravessou a década de 1960 e que dava pelo nome de não-violência.

O que gostaria de vos trazer para diante dos olhos é uma pequena reflexão acerca de como, de facto, querer a paz pode ser e é profundamente violento, sem deixar de ser, certamente, o mais belo dos ideais.

Biologicamente a paz é inexistente. O maior come, sempre, o mais pequeno, numa cadeia alimentar onde a morte de algo não é o fim, mas, sim, o princípio do degrau seguinte da vida e o seu suporte essencial. Uma linda e pacífica mata, ao de cima da terra é, por debaixo, um campo de batalha, sem tréguas e sem descanso, por alimentos e espaço.

Estudar a História humana é, por sua vez, perceber que a sobrevivência do Homo sapiens aconteceu exactamente porque a paz esteve lamentavelmente arredada do quotidiano das décadas e séculos, aparecendo, isso sim, de tempos a tempos, por entremeio da névoa, sempre mais como ideia e desejo do que realidade.

Finalmente, recordemos que a própria energia, de que dependemos, limpa ou suja, renovável ou não, emerge, sempre, da existência do desequilíbrio entre dois pontos. O vento sopra, a água corre, a madeira arde, o Sol, embora muito lentamente para a nossa escala de percepção da vida, gasta-se todos os dias um bocadinho mais, a caminho do seu ocaso definitivo.

De tudo isto percebe-se que a paz, de facto, é uma ideia violentamente oposta a quase tudo o que nos rodeia, insistindo, no entanto, em afirmar-se, no nosso espírito, como uma sólida e belíssima utopia, cuja dificuldade em atingir só a engrandece e nos atrai.

Quando, como neste ano, vendo o Mundo em sobressalto desejamos que haja paz, entrevemos, talvez com mais nitidez do que noutros momentos, que é preciso, muitas vezes, a coragem do sacrifício.

Quem encarnou, há 2000 anos, sabia que o Calvário O esperava, mas não recusou. Sabia que só assim seria a Luz, ao fundo do túnel, de que tanto precisamos. Sabia que a Paz não existe por si, nem é coisa estática. Sabia que ela se constrói, todos os dias, com os outros, quase sempre sobre um caminho de pedras escorregadias.

Um Santo Natal, para todos, com a Paz que vos for possível construir!

*Francisco Maduro Dias é colaborador do Sítio Igreja Açores e Responsável pela Comissão Justiça e Paz da diocese de Angra. Este artigo foi publicado também nos jornais AO e DI.
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