Pelo Padre José Júlio Rocha
«Esparta, meu caro. Já ouviste falar de Esparta e dos espartanos? Foi uma das sociedades mais cruéis da História. Nos nossos dias seria execrável sustentar uma sociedade como essa. O objetivo máximo deles era a guerra e tudo se fazia em função da guerra.»
Quem disse isto foi um amigo meu, que já referenciei noutra crónica, de cabelos oleosos, esticados e bem penteados, sebosos. Um casaco verde-amarelado ligeiramente axadrezado, uns pés compridos e não largos, mãos leptossómicas, estreitas, de dedos longos, cigarro sempre entre eles, já amarelados, que se prolongavam numas unhas cuidadas, o copo de whisky ali, à mão, companheiros. Era um “sef-made-man”, sem grandes estudos mas uma inteligência refinada. Lia como um danado e eu gosto de gente assim.
«Os espartanos escolhiam a dedo os melhores. Se algum bebé nascesse com defeito ou incapacidade, matavam-no. Não servia para a guerra, não servia para mais nada. Então, aqueles que escapavam eram submetidos a provas duríssimas desde a infância. Não podiam ter sentimentos nem fraquezas emocionais. Tinham que se transformar em máquinas de matar, era esse o objetivo. Na batalha de Termópilas, com trezentos homens, os espartanos aguentaram a ofensiva de trezentos mil persas durante três dias, viste isto no filme, não viste? Era a prevalência da força.»
Puxou uma fumarada que lhe inundou quase toda a sua cabeça macilenta. Esticou os dedos, olhou para o infinito e continuou: «hoje vive-se o oposto. Em vez da força, do poder, da lei do mais forte, cultiva-se a fragilidade. Já somos oito mil milhões de seres humanos no planeta. Oito mil milhões! Demasiados. A lei de Darwin é exigente: escapa o mais forte ou o que melhor se adapta ao ambiente. As espécies evoluem deixando morrer os seres com genes mais fracos e doentes, e permitindo sobreviver só os mais fortes e saudáveis. A questão é que a humanidade, no último século, século e meio, não se adaptou ao ambiente: adaptou o ambiente a si. Desde que se descobriu a vacina, a penicilina e outros progressos médicos, os genes frágeis e doentes têm sobrevivido e se misturado com os genes saudáveis e a humanidade está a involuir, está a andar para trás na cadeia da evolução das espécies.»
Olhou-me e nos seus olhos não havia nada, senão um ligeiro interesse pela minha reação às suas palavras. O cigarro pousava num cinzeiro dos anos setenta, uma espécie de mão, cor verde-água, em cujos intervalos dos dedos se descansava o cigarro. Moravam lá meia dúzia de beatas. O fumo esfriava no ambiente. «A humanidade está a ficar decrépita e o fenómeno “woke” não é mais do que a dimensão psicológica e social da decrepitude da humanidade. Já reparaste naquilo que disseram ser as “causas fraturantes”? Não é mais do que o fenómeno “woke”, a sociedade frágil a funcionar. Quando se fala do aborto nunca se refere o ser humano que está dentro do corpo da mulher: é só ela que é importante, os seus direitos e os direitos ao seu corpo e diminuir o sentimento de culpa. Quando se fala das questões de género, cada um pode escolher o seu, para se sentir bem consigo e não ter que suportar o peso da pressão social e da culpa. A linguagem “inclusiva” e o politicamente correto são mais um passo para essa decrepitude. Já viste como o jogador Bernardo Silva foi multado por apresentar um boneco de chocolate negro para felicitar um dos seus melhores amigos, por acaso negro? Não passou de uma brincadeira inocente, perfeitamente aceite numa sociedade sem preconceitos. Mas ele pagou caro, porque há certas coisas que não se podem dizer, sob pena de ofender. Isso! Ofender! É uma civilização de ofendidos. Há quarenta anos, quase todos os dias havia uma cena de bofetadas ou socos nos intervalos do liceu. Ficava tudo calado, não havia queixas aos professores nem se dizia nada em casa, ou levávamos outra vez. Hoje, o aluno entra em depressão quando o professor lhe diz que não gosta do seu corte de cabelo.»
Abanou a perna e embocou mais um cigarro. A mosca, que esvoaçava teimosa em volta das suas mãos, pousara-se-lhe, agora, no cabelo. Passou suavemente a mão esquerda pela cabeça e gemeu mais umas palavras: «Saí de casa com doze anos para trabalhar na cidade. Depois vim para Lisboa e, bem ou mal, cuidei sempre da minha vida. Hoje, um rapaz ou rapariga que venha dos Açores para cá estudar, aos dezoito anos, traz os seus pais consigo, a mãe fica seis meses com ele para ajudá-lo a adaptar-se e, quando vai embora, o rapaz fica a chorar uma semana na almofada da cama. É por isso que eles chegam – por enquanto – aos trinta anos ainda com a chucha na boca.»
Baforou uma cigarrada: «Crescer é sofrer! Ou sofres ou és uma eterna criança. Tens que enfrentar obstáculos e desafios, como o músculo precisa de exercício para se tonificar. Se tiras a uma criança todos os desafios e obstáculos, se lhe ofereces uma pista lisa e sem dificuldades, ela não cresce. E estamos preparando uma sociedade de crianças, egoístas e solitárias, agarradas a telemóveis como a tábuas de salvação.»
A minha roupa já tinha fumado bastante dos cigarros dele quando lhe disse que não concordava com algumas das suas ideias. Ele sorriu, alargou os braços num abraço à atmosfera, quase riu e sentenciou: «Então, meu amigo, desejo-te boas Festividades. É que, dentro de poucos anos, a palavra “Natal” vai ser banida.»
Encaixei.