Praga é uma cidade cinzenta, fria e anónima todas as vezes que Joseph K. a atravessa.
Os humanos são mais sombras do que gente, enigmáticos transeuntes que pertencem a lugar nenhum, não vêm de nenhum lugar e, acho, dirigem-se inexoravelmente para o mesmo nenhum lugar. Como todos, Joseph K. vive nesta espécie de redoma de nevoeiro, pesado e lúgubre, nesta espécie de não saber o que vai aparecer a seguir ao próximo passo e, sobretudo, de não saber se é perseguido pelo além do nevoeiro.
Ninguém explicará a Joseph K. o motivo do processo judicial que lhe foi instaurado. Ele nunca saberá quem o acusa: nenhum rosto, nenhuma entidade, nenhum delator, nenhum juiz dá a cara… Pior ainda, nunca saberá de que é acusado… revolve o passado, procura o motivo da acusação, mas apenas sabe que é acusado. À medida que se lhe aperta o cerco à volta da vida, K. vai destilando a imensa solidão de todos os homens, a impossibilidade do destino, o desamparo de um passado definitivamente perdido. Não há violência. Tudo se despenha num lento, delicado e triste caminhar do tempo e das personagens para a doce catástrofe final. Senhores cinzentos e engravatados olham-no com pena, mas têm que cumprir o oneroso dever da justiça; anónimos desprezam-no com docilidade; velhos amigos nunca, por nada deste mundo, foram amigos. E K. transporta consigo a culpa. Culpa de nada, mas – quiçá por isso mesmo – Culpa perfeita, com maiúscula. O seu percurso consiste em expiar simplesmente a culpa de viver, longe de um qualquer paraíso para sempre perdido. Acaba por aceitar – procurar – a morte a que o condenam. Mas até o processo de morrer (uma faca é-lhe enterrada vagarosa e solenemente no coração) é demorado, ritual e insuportavelmente angustiante.
Joseph K. é a personagem principal de “O Processo” de Franz Kafka, escritor que delineou na perfeição a angústia e a culpa do homem moderno. As suas personagens, esticadas entre a mais fria angústia e a esperança mais abnegada são, a meu ver, as figuras mais derrotadas da história da literatura ocidental. Quase todas elas carregam o fardo de uma culpa sem causa, sem crime, uma culpa dolorosamente inocente.
Os nossos dias lembram-me Kafka e os seus fantasmas. A nova estratégia do terror é como as tardes kafkianas de Praga. Não se sabe o que vai acontecer amanhã e, sobretudo, não se sabe de que ângulo do nevoeiro vai surgir a próxima etapa do terrorismo. Não se sabe quem serão as vítimas, se jornalistas, se judeus, se muçulmanos moderados, se igrejas cristãs, se anónimos inocentes nas estações ou nas praças, se eu ou se tu. O terror pode deflagrar a qualquer momento, em qualquer lugar e, por mais armas que a sociedade ocidental se orgulhe de possuir, é inusitadamente impotente na cara deste terrorismo feroz e niilista.
Resultado? Uma espécie de “big brother” de contornos indefinidos que começamos a aceitar inevitavelmente. Até porque entre dois medos – o medo de ser vigiado até à medula da intimidade e o medo de ser degolado, metralhado ou explodido – venha o primeiro! E assim o medo, o maior inimigo da fé, do amor e da vida, vai-se incrustando por debaixo da pele do homem do século XXI, criando barreiras cada vez maiores, nevoeiros mais densos.
Há alguns anos atrás aterrei em Roma e, no aeroporto, mandaram-me para uma sala privada. Lá, quatro polícias, dois deles primos de Schwarzenegger ou sobrinhos de Stalone, desfizeram, cortaram, analisaram, todos e cada um dos objectos que trazia na mala e fizeram o mesmo comigo e com a roupa que vestia, enquanto me bombardeavam com perguntas sobre a minha origem e destino, o que trazia e que drogas transportava… vinte minutos depois pediram-me desculpa (tinham-se enganado no alvo) e deixaram-me com a mala desfeita e com a alma esfacelada. Poucas vezes na vida ter-me-ei sentido tão só e tão frágil, tão vítima da máxima petroniana “quem guardará os guardas?”.
É exactamente este o futuro que eu gostaria de não encontrar um dia desses.
Pe Júlio Rocha