Todos, todos, todos? Ups!

Pelo padre José Júlio Rocha

 

Foto: Igreja Açores / JC

Na cerimónia de acolhimento da Jornada Mundial da Juventude de Lisboa, 2023, Francisco disse a palavra “todos” 26 vezes. Na homilia da missa dominical, o termo “todos” ecoou 23 vezes. Sobretudo naquela expressão que viralizou: “Todos, todos, todos.”

A expressão, forte em si mesma, foi utilizada gradativamente pelo Papa até chegar ao ápice, quando Francisco pede que os jovens a repitam cada vez mais alto e na própria língua. Tornou-se, obviamente, um “ex-libris” da Jornada, até porque, nem que fosse pela insistência, o Papa quis que essa expressão marcasse aqueles dias.

“Todos, todos, todos”, como não podia deixar de ser, gerou polémica. O Papa Francisco é por vezes espontâneo e imprevisível, ao contrário dos seus antecessores que destinavam um lugar sagrado à prudência nas palavras. Tudo isto tem gerado desconforto em parte da Igreja, que tem visto neste pontificado um certo “desregramento”, mais parecido com um “empurrar com a barriga para a frente” e depois venham os teólogos atrás a juntar os cacos para compor as mazelas que o Papa vai criando. Parece um pontificado que vai atrás de certas modas, como esta da sinodalidade que, sabemos, pode dar poucos resultados e danificar a imagem hierárquica da Igreja, introduzindo nela uma pitada incómoda de anarquia, nada que não tenha acontecido frequentes vezes ao longo da sua história bimilenária.

Semelhante a Francisco foi João XXIII que, na manhã daquele 15 de janeiro de 1959, punha em pânico os cardeais ao anunciar o Sínodo de Roma, a revisão do Código de Direito Canónico e a realização de um Concílio Ecuménico. Não: a Igreja não desabou nesse dia, embora muitos achem que ela tenha começado a ruir aí, num processo cujo ápice terá sido o Concílio Vaticano II e a renovada imagem da Igreja trazida pela “Lumen Gentium”. O pós-concilio foi quase caótico, com o surgimento de movimentos mais progressistas e muitos sacerdotes a abandonarem o ministério. A literatura da época mostra o pânico de alguns membros da Igreja que a viam emaranhar-se numa panóplia de polémicas, o que levou João Paulo II a tentar acalmar os ânimos com uma série de documentos que refrearam o ímpeto da Igreja conciliar. Bem para uns, menos bem para outros, o certo é que a Igreja caminha assim, feita de homens, mas assistida constantemente pelo Espírito Santo.

Sou daqueles que pensam que as crises são oportunidades de crescimento. E não tenho o mínimo grão de dúvida de que a Igreja esteve bem pior quando exaltava o seu triunfalismo nos douramentos e nas vestes pomposas, em contradição com o Mestre, ou quando escondeu crimes de abuso e económicos para não ferir a sua imagem do que em qualquer dos momentos atrás referidos, incluindo o atual. Quando se torna mundanamente autorreferencial e se debruça doentiamente sobre si própria, a Igreja atira para terceiro plano a sua primária vocação missionária, que é viver e anunciar Jesus.

Sim. Jesus. É Dele e do Seu Evangelho que nos esquecemos frequentemente quando discutimos o atual estado da Igreja. Com que chicote chegaria Jesus aos nossos templos?

A expressão “Todos, todos, todos” é apenas mais uma gafe do Papa ou entronca na mais bela teologia da Salvação, apontando para um Cristo que, de braços abertos na cruz, deu a vida por toda a humanidade, porque toda a humanidade é filha do mesmo Deus? É apenas mais uma impertinência de Francisco ou está apenas a ser a Igreja Católica, isto é, universal, que abre os braços, como a colunata de Bernini, a todos os que precisam de Jesus?

Vamos ao Evangelho. Jesus precisava de passar por Jericó. Escondido por detrás das frondas de um sicómoro, Zaqueu era o homem mais execrável e odiado em toda a cidade. A sua “baixa estatura”, no dizer de Lucas, era também moral. E, no entanto, Jesus não lhe disse que o inferno estava à sua espera, não disse que era um grande pecador e tinha que pagar por todos os seus pecados, nem sequer lhe exigiu nenhuma mudança de vida: “Zaqueu, desce depressa que Eu hoje preciso ficar em tua casa”. E Zaqueu caiu da árvore abaixo, recebeu Jesus e deu tudo: o princípio da conversão foi o próprio convite de Jesus. Método de Jesus: entra e converter-te-ás. Grande tentação nossa: converte-te e só depois entra… Evidentemente que Jesus escandalizou toda a comunidade de Jericó, como não podia deixar de ser.

A verdadeira mudança que a Igreja precisa cada vez mais é demasiado exigente, desmesuradamente exigente para que nós a olhemos de frente sem cegarmos, como quem olha o sol, preferindo desgastarmo-nos numa digladiação de apontar os dedos à outra parte. A verdadeira mudança é a conversão pessoal (e comunitária) a Jesus. É que não há outro caminho. Então as pessoas olhariam para nós e diriam: “vede como eles se amam”. Aí não precisaríamos mais de uma “Igreja-alfândega”, com muros em vez de pontes, para nos defendermos do mundo e do medo.

É tudo muito mais radical do que se pensa. Se cada cristão se propusesse a este imperativo da conversão a Jesus e de amar o outro como Cristo amou… estão a ver a diferença? Este é um dos pontos em que o Papa Francisco se tem esgotado a falar e a escrever, em comunhão com os seus antecessores, leiam “Dilexit Nos”.

Sem isto, tudo o resto não passa de uma dramática derrapagem que desvia a Igreja do seu caminho.

(Este Artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do jornal Diário Insular, na coluna Dorsal Atlântica)

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