Nova encíclica do Papa denuncia mundo sem “coração”, preso ao consumo e à violência

Documento sublinha importância da relação humana, perante desenvolvimento tecnológico

Foto: Lusa

O Papa publicou hoje a quarta encíclica do pontificado, ‘Dilexit nos’ (amou-nos), em que alerta para um mundo sem “coração”, preso ao consumo e à violência.

“Hoje tudo se compra e se paga, e parece que o próprio sentido da dignidade depende das coisas que se podem obter com o poder do dinheiro. Somos instigados a acumular, a consumir e a distrairmo-nos, aprisionados por um sistema degradante que não nos permite olhar para além das nossas necessidades imediatas e mesquinhas”, escreve Francisco, num texto dedicado à na devoção ao Coração de Jesus.

O Papa sublinha que o amor de Cristo está “fora desta engrenagem perversa”, abrindo lugar para o “amor gratuito” e contrariando a lógica da violência.

“Assistindo a sucessivas novas guerras, com a cumplicidade, a tolerância ou a indiferença de outros países, ou com simples lutas de poder em torno de interesses de parte, podemos pensar que a sociedade mundial está a perder o seu coração”, adverte.

“Ver as avós a chorar sem que isso se torne intolerável é sinal de um mundo sem coração”, acrescenta o Papa.

Além dos ensinamentos de vários pontífices, a encíclica cita Homero ou Dostoievski, reflexões de teólogos, místicos e filósofos, além de pensadores contemporâneos como Han Byung-Chul.

“O algoritmo que atua no mundo digital mostra que os nossos pensamentos e as decisões da nossa vontade são muito mais padronizados do que pensávamos. São facilmente previsíveis e manipuláveis. Não é o caso do coração”, indica a encíclica.

Na era da inteligência artificial, não podemos esquecer que a poesia e o amor são necessários para salvar o humano”.

Num texto com 220 pontos, divididos por cinco capítulos, uma introdução e uma conclusão, Francisco aponta o dedo a “uma sociedade cada vez mais dominada pelo narcisismo e pela autorreferencialidade”, falando numa “sociedade anticoração”, sem capacidade para “relações saudáveis”.

O Papa recorda que, na piedade católica, se recorre ao símbolo do coração para “exprimir o amor de Jesus Cristo”.

“Há quem se interrogue se isto tem atualmente um significado válido. Porém, é necessário recuperar a importância do coração quando nos assalta a tentação da superficialidade, de viver apressadamente sem saber bem para quê, de nos tornarmos consumistas insaciáveis e escravos na engrenagem de um mercado que não se interessa pelo sentido da nossa existência”, observa.

O nome da encíclica vem de uma passagem da carta de São Paulo aos Romanos (Rm 8, 37), sobre o amor de Cristo.

O coração, recorda Francisco, é apresentado, desde a antiguidade, como “centro unificador” do ser humano, nas suas várias dimensões.

“Neste mundo líquido, é necessário voltar a falar do coração”, indica.

A encíclica aponta à “verdade íntima de cada pessoa”, muitas vezes “escondida debaixo de muita superficialidade”, impedindo que se coloquem as “perguntas decisivas” da existência.

“Movemo-nos em sociedades de consumidores em série, preocupados só com o agora e dominados pelos ritmos e ruídos da tecnologia, sem muita paciência para os processos que a interioridade exige”.

O Papa pede espaço para o diálogo, nas comunidades, com um coração “capaz de compaixão” para promover gestos de fraternidade e solidariedade.

A encíclica encerra-se com uma oração do Papa, para que o mundo, “que sobrevive entre guerras, desequilíbrios socioeconómicos, consumismo e o uso anti-humano da tecnologia, recupere o que é mais importante e necessário: o coração”.

Papa sublinha importância e atualidade da devoção ao Coração de Jesus

Francisco defende a importância e atualidade da devoção ao Coração de Jesus, recordando o contributo de teólogos, místicos e vários Papas, ao longo dos séculos.

“A devoção ao Coração de Cristo é essencial para a nossa vida cristã, na medida em que significa a nossa abertura, cheia de fé e de adoração, ao mistério do amor divino e humano do Senhor, até ao ponto de podermos voltar a afirmar que o Sagrado Coração é um compêndio do Evangelho”, escreve.

O Papa precisa que “a devoção ao Coração de Cristo não é o culto a um órgão separado da pessoa de Jesus”.

“É ensinamento constante e definitivo da Igreja que a nossa adoração da sua pessoa é única, e abrange inseparavelmente tanto a sua natureza divina como a sua natureza humana”, indica.

Sublinhando a importância da religiosidade popular na universalização desta devoção, com imagens representando Jesus com o seu coração, Francisco adverte que “uma forma mais abstrata ou estilizada não será necessariamente mais fiel ao Evangelho, porque neste sinal sensível e acessível se manifesta o modo como Deus quis revelar-se”.

Entre as várias referências históricas, o Papa destaca os acontecimentos de Paray-le-Monial, na Borgonha (França), onde Santa Margarida Maria Alacoque relatou “importantes aparições” entre o fim de dezembro de 1673 e junho de 1675.

A mensagem da religiosa veio desenvolver uma devoção que já se encontrava na mística alemã do final da Idade Média e que, segundo Francisco, esteve “presente na história da espiritualidade cristã de diversas maneiras”; a solenidade do Coração de Jesus é assinalada por toda a Igreja Católica desde 1856, por decisão do Papa Pio IX.

Francisco fala ainda do papel de São Carlos de Foucauld (1858-1916) e Santa Teresa do Menino Jesus (1873-1897), que “reformularam certos elementos da devoção ao Coração de Cristo”, bem como o papel da Companhia de Jesus (Jesuítas), neste campo.

A encíclica recorda as experiências de Santa Faustina Kowalska (1905-1938), que colocam “uma forte ênfase na vida gloriosa do Ressuscitado e na misericórdia divina”.

O texto recorda que, em muitas passagens dos Evangelhos, “Jesus está atento às pessoas, às suas preocupações, ao seu sofrimento”, destacando a união entre “a devoção ao Coração de Jesus e o compromisso com os irmãos”.

“A proposta cristã é atrativa quando pode ser vivida e manifestada na sua integralidade: não como um simples refúgio em sentimentos religiosos ou em cultos faustosos”, sustenta.

O Papa reza para que o Coração de Jesus inspire os católicos na “capacidade de amar e servir” e os leve a “caminhar juntos em direção a um mundo justo, solidário e fraterno”.

‘Dilexit nos’ surge depois das encíclicas ‘Lumen fidei’ (2013), que recolhe reflexões sobre a fé iniciadas por Bento XVI; ‘Laudato si’ (2015), documento que propõe uma ecologia integral, abordando questões sociais e ligadas ao meio ambiente; e ‘Fratelli tutti’ (2020), que recolher as reflexões de Francisco sobre a fraternidade e a amizade social.

A palavra ‘encíclica’ vem do grego e significa ‘circular’, carta que o Papa enviava às Igrejas em comunhão com Roma, com um âmbito universal, onde empenha a sua autoridade primeiro responsável pela Igreja Católica.

O Papa mais prolífico neste tipo de cartas é Leão XIII, com 86 encíclicas – embora muitos desses textos fossem, nos nossos dias, classificados como cartas apostólicas ou mensagens; São João Paulo II escreveu 14 encíclicas e Bento XVI três.

A encíclica é uma forma muito antiga de correspondência eclesiástica, dado que na Igreja os bispos enviavam frequentemente cartas a outros bispos, para assegurar a unidade entre a doutrina e a vida eclesial.

Bento XIV (1740-1758) reavivou o costume, enviando “cartas circulares” a outros bispos, abordando temas de doutrina, moral ou disciplina que diziam respeito a toda a Igreja; com Gregório XVI (1831-1846), o termo encíclica tornou-se de uso geral.

(Com Ecclesia e Vatican News)

 

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