Da amizade e dos lugares seguros

Foto: Igreja Açores/GM

Por Carmo Rodeia

No inicio da semana que termina hoje, a liturgia brindava-nos com o episódio da visita de Jesus aos três irmãos de Betânia: Marta, Maria e Lázaro. Uma visita que diz tanto dos visitados como do visitante.

Diz-nos o texto do Evangelho que Jesus chorou a morte de Lázaro, enquanto Marta lhe pedia intercessão para que o irmão ressuscitasse, depois de quase ter censurado o Amigo por não ter estado lá e o irmão ter morrido. Já Maria inquieta, permanecia confiante…

Jesus chora a morte do amigo. Alerta Marta para a divisão do seu coração, gasto em tantas tarefas e fala com Maria sobre o que a inquieta, ela que estava sempre à espera do seu senhor. A relação dos três irmãos com Jesus era de grande proximidade. Era mais do que uma relação de vista ou de amizade pontual. E nesta relação de amizade sobressaem não só os milagres da ressurreição ou as palavras sábias de quem por experiência ou sabedoria se aproxima do amigo e lhe dá conselhos. O que Jesus oferece é a sua presença. Ofereceu-a às irmãs de Betânia naquele momento de dor e continua a oferecer a cada um de nós, quotidianamente, mesmo quando nós não a vemos ou nem a sentimos.

“Já não vos chamo servos, mas amigos”, diz Jesus aos seus discípulos. A amizade, nunca é uma relação fugaz e passageira, mas uma profícua relação de afeto que nos faz sentir unidos. É, assim, uma espécie de amor generoso que nos leva a procurar o bem do amigo. Embora os amigos possam ser muito diferentes entre si, há sempre algumas coisas em comum que os leva a sentir-se próximos, e há uma intimidade que se partilha com sinceridade e confiança.

Desde crianças, aprendemos como essa experiência é bela. Depois, quando crescemos, como adolescentes, confiamos aos amigos os nossos primeiros segredos; como jovens, oferecemos lealdade; como adultos, partilhamos satisfações e preocupações; como idosos, revivemos lembranças, considerações e silêncios de longos dias. Lembro-me bem da minha mãe quando ela e as amigas se juntavam, quase sempre para falar dos velhos tempos, não em jeito de que esse é que eram bons mas porque eram os tempos em que tinham sido felizes.

Mesmo na família se não formos amigos e não houver amizade verdadeira os laços de sangue podem unir-nos mas a vida nunca se partilhará. E não será por vivermos todos na mesma casa, ou na mesma rua ou na mesma cidade que somos mais próximos e mais amigos.

Sempre me considerei uma mulher de família, primeiro na biológica; depois na que formei. Hoje vivemos todos separados: um aqui, outro ali, outro acolá e eu para aqui… Não vou esconder que tenho saudades dos almoços de domingo ou dos serões mais festivos, mas tenho a certeza de que nunca fomos tão família como somos hoje. Cada um com a sua vida mas todos a tocarem a vida uns dos outros.

Cruzei-me na rua Machado dos Santos, outro dia, com uma amiga de longa data, com quem já não falava há anos. Demos um abraço daqueles que cria um novo espaço de cumplicidade e relatamos o tempo como se o último encontro tivesse sido no dia anterior. Com a mesma confiança e a alegria da partilha.

“O amigo ama em todas as ocasiões”, diz o Livro dos Provérbios, como nos mostra Jesus quando diz a Judas, que o trai com um beijo: “Amigo, é para isso que estás aqui”. Mesmo quando cometemos um erro: corrigimos, repreendemos, mas perdoamos e não abandonamos.

No ensaio sobre a amizade, o filósofo americano Ralph Waldo Emerson (1803-1882) afima que “O único modo de ter um amigo é ser um amigo”.

Por outras palavras: a verdadeira amizade é reciprocidade, sendo um dos muitos rostos do amor. E o amor exige doação, e não posse, é dom recebido e é zelo pelo outro.

Recordo aqui um concurso, ao jeito da vaca Cornélia (imaginem o tempo que passou!), desenvolvido no programa de uma das festas de verão em Beringel, concelho de Beja, onde nasci, no primeiro fim de semana de setembro, quando se celebra Nossa Senhora da Conceição, padroeira da freguesia.

Eu e os meus irmãos, com mais uns amigos participámos nesse concurso caseiro, imitando o grande concurso apresentado por Carlos Cruz com a participação do Raúl Solnado e do Fialho Gouveia, que estava na berra. A dada altura, tínhamos de interpretar uma música. Como sabe quem me conhece, a minha voz é pior que uma cana rachada. Toco campainhas de porta e pouco mais. Mas lá fui integrar (ou desintegrar) o coro familiar a interpretar um tema de Carole King you´ve got a Friend, do albúm Tapestry de 1971, que mais tarde James Taylor, Barbara Streisend e Aretha Franklin voltaram a interpretar magistralmente…

“When you’re down and troubled| And you need some lovin’ care| And nothin’, nothin’ is

goin’ right| Close your eyes and think of me| And soon I will be there| To brighten up even your darkest night| You just call out my name| And you know, wherever I am| I’ll come runnin’| To see you again| Winter, spring, summer or fall| All you have to do is call| And I’ll be there| You’ve got a friend”.

A amizade não é apenas um sentimento, requere comunhão e dá-nos uma enorme certeza: mesmo na distância é um lugar seguro, onde podemos descansar como fazia Jesus em Betânia junto dos seus amigos e eles juntos com Ele.

Não esperamos nada dos nossos amigos, e essa franqueza é fundamental, como nos lembra o Cardal Tolentino Mendonça, em O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas.

Mas, conclui: “não esperando nada, esperamos tudo, na medida em que a sua existência nos permite existir”. Mesmo que não falemos todos os dias, e não nos cruzemos na rua com frequência e até estejamos um aqui, outro ali, outro acolá e… eu para aqui.

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