“A beleza que acontece em cada casa, em cada quarto e em cada família é singular: não se trata apenas de ter o santo, é a devoção que as pessoas têm pelo vínculo  da fé que as une e faz reunir”- Padre José Borges

 

Foto: Igreja Açores/CR

Festa de São Miguel Arcanjo decorre entre 8 e 15 de maio em Vila Franca do Campo. Festa paroquial ganha relevãncia social por causa da Procissão do Trabalho

A festa de São Miguel Arcanjo, padroeiro de Vila Franca do Campo e também nome do Santo que deu origem à designação da maior ilha do arquipélago, goza de uma singular particularidade: a Procissão do Trabalho que apesar de desfasada da atual realidade social e profissional da antiga capital da ilha continua a ser um dos momentos altos desta festa paroquial, com dimensão de ouvidoria.

A cada dia 8 de maio ( ou no domingo seguinte) todos os caminhos convergem para a Igreja Matriz de São Miguel, cuja celebração, este ano presidida pelo Bispo de Angra, marca o dia das celebrações religiosas.

“O ritmo das festas sai da rotina mas entra num patamar muito rico: as famílias juntam-se, há convívios, as pessoas fazem festa e a Igreja não pode estar alheia a este ritmo que nos diferencia da rotina mas que nos coloca no patamar do convívio” afirma o pároco, também ouvidor de Vila Franca do Campo, padre José Borges.

“O que soma a isso tudo é a fé e nós, ainda por cima, temos a sorte de ter connosco o santo padroeiro da ilha, que lhe deu o seu nome porque na ancestralidade fomos a primeira capital” refere ainda sublinhando um certo “bairrismo” dos vilafranquenses, que justifica: “ as raízes vilafranquenses são bairristas. As pessoas comprometem-se, participam, fazem e gostam de mostrar o que fazem e têm boas razões para isso, porque o que fazem é sempre bem feito”.

As Festas em Honra de São Miguel Arcanjo são quase tão antigas como a descoberta da ilha e a Procissão (momento alto das comemorações) mantém as origens medievais, em que as diferentes profissões tomam parte no cortejo acompanhando o seu santo patrono. Diz-se até que, em tempos bem antigos, eram multados os que não acompanhavam o seu protetor e a procissão tinha um carácter obrigatório.

“São Miguel orgulha-nos muito pela fé que alimenta e que as pessoas revelam de forma muito natural. Traz-nos a marca do tempo e isso faz-nos sonhar e quem sonha avança sempre mais”, salienta o sacerdote ao destacar o carácter “genuíno” desta festa que conta sobretudo com o empenho e envolvimento das famílias que montam os quartos, no melhor lugar da casa, de porta aberta para a rua, onde as imagens dos Santos ficam expostas, entre sexta-feira e segunda-feira, para que todos os possam visitar.

 

A documentação da Câmara de Vila Franca do Campo no século XVII revela, segundo investigação desenvolvida pela professora Margarida Sá Nogueira Lalanda, que “a procissão de S. Miguel decorreu nalguns anos na última semana de setembro (cujo dia 29 é o seu e dos outros dois Arcanjos, S.Gabriel e S.Rafael), noutros no início de maio (por se celebrar no dia 8 uma aparição sua), e noutros não se realizou”, não se fazendo uma referência concreta à sequência das corporações ou se a procissão apenas contava com a imagem do Santo Padroeiro.

“Em compensação, ficaram registados os nomes dos quadros alegóricos, danças e folias que cada tipo de artesãos era mandado fazer sempre para abrilhantar as procissões camarárias” refere a investigadora da Universidade dos Açores.

O nome “Procissão do Trabalho” foi-lhe atribuído em 1927 por um vilafranquense ilustre, Padre Ernesto Ferreira, no seu livro A Alma do Povo Micaelense, e tem sido mantido, adianta ainda a investigadora, salientando o facto de há muito tempo esta procissão ter deixado de refletir a composição profissional e social da Vila.

“Deve entender-se agora mais como um registo histórico-etnográfico do que como um espelho da realidade vivida ou definida” frisa recordando, ainda, o empenho das autoridades civis para que a procissão se mantivesse, hoje “felizmente, graças ao esforço coletivo dos moradores e das entidades de Vila Franca do Campo”, que permite que esta procissão figure  no calendário anual dos roteiros de Turismo Cultural da ilha de São Miguel e atraia também alguns forasteiros.

A procissão que chegou ao século XXI integra doze imagens dos oragos de diferentes ocupações e profissões, tradicionais ou adicionadas na época contemporânea, que precedem o andor do Arcanjo(o 13º andor) são enfeitadas e transportadas em nome das atividades seguintes: São Pedro Gonçalves e o seu barco, pescadores; Santo Antão, lavradores; Santo António, oleiros; São Nuno de Santa Maria, o Condestável, profissionais liberais; Santa Catarina de Sena, barbeiros; São José, carpinteiros; São Crispim, sapateiros; São João Batista, pedreiros; Nossa Senhora da Paz, militares;  Nossa Senhora do Egipto, arrieiros e albardeiros; Menino Jesus, alfaiates; São Vicente de Paula, congregações vicentinas, de juventude e desfavorecidos. De todas estas imagens, apenas três estão durante o ano em templos religiosos (São Miguel, Menino Jesus e Senhora da Paz) estando as restantes em casa de famílias que as recolhem.

 

O périplo dos quartos precede a procissão propriamente dita. Poucos sabem, inclusive, a origem e data das esculturas destes `santos do povo´, mas ninguém esconde a devoção que lhes tem.

Que o diga Isabel Furtado que guarda  a imagem de São José o ano inteiro. O quarto, o primeiro que visitámos, foi montado “em família”. Uma promessa antiga de Isabel e Adriana, as duas irmãs que pediram a intercessão de São José na cura do pai, que se encontrava doente. Faleceu em 2000, mas 17 anos depois, as duas resolveram juntar a família e prestar homenagem a este santo, patrono dos carpinteiros.

“A minha família sempre esteve ligada às madeiras e há muitos  `Josés´ por causa disso. Falo muito com ele e em março organizei o terço de São José, todos os dias”, diz com um entusiamo que lhe salta pelos olhos mais do que pela voz, por vezes quase que embargada.

“O meu marido brinca comigo e diz que passo mais tempo com São José do que com ele”, afirma para aligeirar a emoção no meio da azáfama da preparação da festa.

Mas, “não é pela festa que estas coisas se fazem. Há outras coisas” diz reforçando que o trabalho juntou a família, uma vez mais.

“É um santo familiar e o seu quarto é feito pelos santos da casa”, brinca.

“As pessoas não precisam de uma lei; é tudo muito espontâneo e genuíno e isso revela esta beleza original da fé: as pessoas expressam a sua fé mostrando o melhor que sabem e podem, na beleza que acontece em cada casa, em cada altar e em cada família e que é singular”, prossegue o padre José Borges frisando que “não se trata apenas de `ter´ o santo. É a devoção que as pessoas têm  pelo vinculo  da fé que os une e reúne”.

“Todos têm um compromisso em `ter´ o santo, em fazer o quarto… Mas isso já é o resultado de um ano inteiro de oração, de conversa, de beleza e isso faz parte da construção da família. Que remonta lá atrás, porque as pessoas sabem a história do santo e têm muito gosto na fé que professam”, diz o sacerdote.

 

No Centro Catequético de Vila Franca está São Vicente de Paulo. “Uma gruta onde está um mendigo a ser visto por São Vicente, que representa as obras de caridade da Igreja”, explica Miguel Rodrigues responsável pela feitura deste quarto, paredes meias com a loja solidária da Cáritas aberta no inicio do ano.

Em frente está o Menino Jesus, quarto organizado pelo Agrupamento 436 do CNE, de Vila Franca do Campo.

“Todos se empenham e todos dão o seu melhor”. Em grupo de amigos ou em família, o que importa é manter viva a devoção porque já começam a faltar amigos terrenos dos santos, disponíveis para os homenagear.

Luís Pereira e Rui Flávio  desde 2008 que montam o quarto a Santo António de Lisboa ou de Pádua, na verdade “o que importa é que é um santo incrível”, refere o Luís ressalvando que foi o único santo, a par de Santa Teresa, capaz de estar em dois lugares ao mesmo tempo.

“Este ano recriámos o milagre do casamento da jovem que conta a história de uma jovem que queria casar-se e pediu um milagre a Santo António para lhe arranjar um marido. E como tardava em ver concretizado o seu pedido zangou-se com o santo e atirou a sua imagem porta fora. Na hora em que o fez estava a passar um cavaleiro nobre que a apanhou e quando lhe foi devolver a imagem apaixonou-se por ela e casaram”, conta de forma entusiasmada.

“Todos os anos consultamos o livro antigo de Santo António e escolhemos um milagre” o que não é fácil pois “ele tem muitos”.

“É o santo com mais milagres em toda a cristandade” diz de forma sabedora, ciente de que também já operou alguns na sua vida.

“A ajuda nos estudos foi o que mais lhe pedi e ele sempre me atendeu” refere Luís Pereira.

“O meu pai era António; nada acontece por acaso”, conclui.

Esta ligação seja pelo nome seja pelo trabalho é fundamental.

“Mais do que rezar falo com ele todos os dias, durante todo o ano, há mais de 16. E, se pensar nos meus sogros há mais de 25” refere Graça Pacheco, a cujo apelido se poderia juntar Antão. Guarda a imagem de Santo Antão desde sempre e todos os anos organiza o seu quarto.

“Ele está sempre connosco em nossa casa. Aliás, ocupa lugar de destaque. Temos grande devoção; ele é como que o patrono dos lavradores e o meu marido e toda a família trabalha neste ramo”, refere.

“Este ano procuramos recriar a nossa vida quotidiana que é sempre acompanhada por Santo Antão”, diz.

Embora há menos tempo mas com igual devoção, Ana Sofia Carreiro fez o quarto da Senhora do Egito.

“O meu marido já fazia este quarto para a sua patroa. Ele é camponês e nós prometemos que um dia haveríamos de fazer. Foi este ano  e estou muito feliz”.

A fechar a procissão dos Santos, estará o Arcanjo que “sai à rua empunhando espada e escudo com a insígnia Quis Ut Deus – ‘Quem Como Deus?’, a origem hebraica do nome Miguel. Mikeel, significa Mi (quem) Ke (Como) El (Ele Deus)”.

De todas estas imagens, apenas três estão durante o ano em templos religiosos (São Miguel, Menino Jesus e Senhora da Paz) estando as restantes em casa de famílias que as recolhem.

A festa começou com uma romaria à Ermida de Nossa Senhora da Paz, com oração do Terço. A imagem depois foi trazida para a Igreja Matriz.

Durante os dias que se seguem há sempre um programa cultural. No sábado, de manhã realizou-se a recolha das oferendas- Migalha- e de tarde o Cortejo da Migalha, com desfile de carros alegóricos.

O dia principal da festa é o domingo com a celebração eucarística e a procissão do trabalho.

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