Pelo padre José Júlio Rocha
A solidão é um porto abandonado. Penso nisso todas as vezes que, viajando pela ilha do Pico, ali pelos lados do Monte, me abeiro das rochas negras da costa, ali mesmo naquela calheta onde, há muitos anos, construíram o Porto do Calhau, extensão de pedra a sulcar um mar quase tão escuro como as rochas. A pedra escura do molhe é pintada de branco nas juntas, formando um padrão quase axadrezado, há um guindaste a abandonar-se na ponta do cais, não há barcos, um pescador solitário olha para qualquer coisa parecida com o infinito e o Faial ao lado, não há sequer uma gaivota, apenas o mar faz algum tumulto no contraste brutal entre a espuma branca e a rocha negra. Ali, se avistarmos a Montanha, a ilha a subir em ligeiro declive, a acentuar a subida até à majestade do Pico, ali mesmo, sentado numa pedra qualquer daquele porto, é o lugar ideal para se declamar as poesias de José Tolentino de Mendonça.
Dizer-te
É inclinar-me sobre o silêncio
Ou então
Silêncio:
Os passos que escuto
Não se dirigem para mim
Ou ainda, então, Daniel Faria
Ouvir-te é ficar só uma vez mais
Todos os filmes deviam começar assim: há um porto quase abandonado, um pontão penetra impassível o mar revolto e cinzento, penetra o manto de nevoeiro que costuma avizinhar-se da terra, por mar, nos dias mais frios de outono – e todos os filmes tristes deviam começar ou findar no outono. E há uma mulher com uma capa escura e um longo capuz a cobrir-lhe os cabelos, o vento dá outra amplidão ao manto, de longe não parece senão uma silhueta que enfrenta, em toda a sua fragilidade, a imensidão, à maneira dos heróis solitários que vêm da tragédia grega até aos nossos dias. A ressalga atinge agressiva o rosto da mulher, mas o rosto da mulher continua impassível, como o servo de Jahwé em Isaías: “Não resisti nem recuei um passo.” E a mulher olha para o lado de lá, onde se adivinha o infinito, e ninguém nunca saberá se ela está à espera ou se veio à procura, ou se as duas coisas.
Não me abandones mais, solidão, nunca mais me deixes só. Prefiro a tua perturbante companhia ao barulho superficial do mundo, mil vezes será melhor falar contigo do que ouvir nada no meio da multidão. Em silêncio me recolho à procura do poema que ainda não está escrito e que será meu, absolutamente meu, que ninguém lerá antes de ti. E o meu filme, que começou naquela mulher a oferecer a cara à tempestade, deve, necessariamente, terminar com um homem a subir a montanha íngreme de um país distante, com um violino a tiracolo, à procura de um guru, mesmo que seja um pequeno deus, que lhe dará o ingrediente perfeito para que, do violino, possa sair o som mais belo alguma vez ouvido: o som do perfeito sofrimento.
Um dia serei escravo no Egipto. Comerei cebolas e carne das panelas, vendida a liberdade e a solidão pelo preço de comer. No dia seguinte, atravessarei o mar aberto, fugirei das panelas e das cebolas, da escravidão e do conforto da escravidão. Então serei livre. Mas no deserto. Não cederei ao desejo de regressar ao Egipto, não terei medo da liberdade nem desviarei o meu rosto da solidão mais desejada, aquela que a liberdade me oferece.
Talvez seja esta a história mais exata. Não ter morada nem descanso, apenas uma trouxa e um par de sandálias, nómada, mais nada e – isso – a mão direita de Jesus. Jesus e a minha liberdade, Jesus e a minha solidão, Jesus e o resto. Então estarei pronto para o mundo, porque, como dizia Clarice Lispector, “Amor será dar de presente ao outro a própria solidão. Pois é a coisa mais última que se pode dar de si.”
E se, para os outros, a dor dos outros é uma dor a metade, quero ter a liberdade de sentir a tua dor inteira. Só assim serei padre.