Esses estranhos que nos amam

Foto: Igreja Açores / José Cabral

Pelo Padre José Julio Rocha

Ninguém tem mais amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos. Vós sois meus amigos, se fizerdes o que Eu vos mando. (Jo 15, 13-14)

Lendo o acima escrito, até parece que Jesus põe condições estranhas para que sejam seus amigos. A amizade não pode ser condicionada, tem o seu quê de espontâneo e natural, despretensioso e franco, ninguém diz “só sou teu amigo se me emprestares dinheiro” ou coisa assim, isto mais parece brincadeiras de canalha, “não me emprestas a bola, não sou mais teu amigo.”

Jesus ultrapassou todos os limites: vocês só são meus amigos se fizerem o que eu mandar… Nem o pior dos capangas da nossa infância era capaz de condicionar a amizade a ponto de os amigos serem só os que lhe obedecem. Vá lá, acontece muitas vezes, mas não se diz, fica feio. Para Jesus, a condição era exatamente Ele mandar.

Só que, apenas três versículos mais abaixo, compreendemos, sem espinhas, o que é que Jesus queria mandar: «É isto o que vos mando: que vos ameis uns aos outros.» (Jo 15, 17) Então ficamos a compreender que Jesus não quer mandar, Ele exige, isso sim, um mandamento, uma condição sine qua non para a amizade com Ele. É como se dissesse: só podem ser meus amigos se forem amigos uns dos outros. No fim de contas, Jesus deu-nos a vida para que nos amássemos uns aos outros, e não há nada no mundo comparável a esse dom. A amizade, como Jesus a ensinou, é tão importante que, hoje, a maior parte dos verdadeiros cristãos a consideram o mais belo veículo de evangelização. Certo, não nos vamos fazer amigos com o intuito de evangelizar, seria uma amizade artificial, interesseira, da onça. Na amizade tendemos a imitar-nos uns aos outros e isso também é evangelizar. Diz-se nos Evangelhos que Jesus era amigo de publicanos e pecadores, e comia com eles, o que incomodava muita gente. Quando Lhe perguntavam porquê comia com essa gente, Jesus dizia que não eram os que tinham saúde que precisavam de médico mas os doentes. Algo de extraordinariamente forte unia Jesus aos excluídos, a ponto de lhes dedicar a Sua amizade. Jesus não desistia dos amigos, nem quando Judas se aproximou para O beijar. As últimas palavras que Judas ouviu da boca de Jesus foram: “Amigo, a que vieste?”

A história da ressurreição de Lázaro é um hino à amizade. Betânia, a meia légua de Jerusalém, era a aldeia onde viviam Marta e Maria, com seu irmão Lázaro. Era lá que Jesus ia descansar, no remanso dos dias, vivendo a amizade com aqueles três irmãos como um tesouro escondido. O Evangelho de São João, no capítulo 11, não tem pejo em afirmar que Jesus era muito amigo de Marta, da sua irmã e de Lázaro. E, profundamente comovido, chorou a sua morte.

As irmãs de Lázaro tinham temperamentos opostos. Marta era ativa, despachada, trabalhadora e, sabe-se lá, também um pouco recadeira. Disse a Jesus que estava aborrecida com a irmã, porque ela estava a trabalhar e a irmã a ouvi-Lo, sentada a Seus pés. Quando Jesus chegou a Betânia, depois da morte de Lázaro, Marta saiu-lhe ao encontro a pedir contas, mão na anca, pela Sua demora. Jesus era muito amigo dela. Maria, pelo contrário, era pacífica e nutria por Jesus uma amizade sentimental, quase diria uma secreta paixão por Ele. Foi ela, segundo São João, que beijou os pés a Jesus, os enxugou com as suas lágrimas, os perfumou com nardo puro. Era ela que, enquanto Marta se debatia com as tarefas de casa, ficava sentada aos pés de Jesus a ouvir a Sua voz. Foi ela que, quando soube que Jesus tinha chegado após a morte do irmão, ficou por casa, Jesus tinha vindo, já não havia lugar para o desgosto. Marta regressou a casa e disse a Maria em voz baixinha, sabe-se lá porquê: “Está cá o Mestre e está a chamar por ti”. E Maria levantou-se e correu para Jesus com todas as forças que tinha. O amor sem amizade nunca o será.

Quanto a mim, aos 55 anos e quase já a olhar mais para trás do que para diante, declaro solenemente a amizade o mais alto patamar do ser-se humano. Na verdadeira amizade há um não sei quê que não se consegue explicar. É como se nada mais houvesse a dizer no mundo e, no entanto, ainda continuássemos a falar sem dizer nada, como os pássaros que dançam ao entardecer sobre a cidade de Roma, rendilhando em todas as direções e fazendo estupendos desenhos no céu, numa sincronia que não precisa de ensaios, uma dança silenciosa e bela, um elogio à gratuidade.

Mas a maior impressão é a da alegria. Não sei porquê, mas a tristeza, no senso comum, dá a ideia de ser bem mais profunda do que a alegria, corroborada com o dito popular que afirma “facilmente esquecerás a cara daquele com que riste, nunca esquecerás o ombro onde choraste.” Sim. É verdade. Mas a amizade serve exatamente para isso: transformar a tristeza em alegria. É que a alegria é mais propensa a criar anedotas do que poemas e a razão é que a alegria é, por si mesma, um poema daqueles que nunca poderão sair da boca para fora ou alguma vez serem escritos.

Aqui há uns anos, a caminho de Sanábria na Espanha, eu e um grande amigo, por causa de uma coisa tolinha, tolinha, rimos a bandeiras despregadas a ponto de nos dar dores nos rins. Acabámos por já nem saber do que estávamos a rir e por isso continuávamos a rir como doidos.

A recordação desse momento é, para mim, um poema.

 

Rua do Palácio, 18 de janeiro de 2024. Dia de amigos.

 

Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio

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