A extraordinária invenção do medo

Foto: Igreja Açores / José Cabral

Pelo padre José Júlio Rocha

“Diante de Deus e do mundo, o mais forte tem o direito de fazer prevalecer a sua vontade. Para quem não tem a força, o direito em si não adianta! Toda a natureza é uma luta formidável entre a força e a fraqueza, uma vitória eterna do forte sobre o fraco.”

Estas palavras, proferidas por um estadista ocidental do século XX, parecem tiradas de “A Vontade de Poder” de Nietzsche, não fosse a palavra “Deus” estar presente nelas, o que invalida qualquer referência ao pensador alemão que enlouqueceu no fim do século XIX.

Essas palavras conterão em si algo de verdade? O certo é que a natureza não é pródiga em misericórdia e o que vemos normalmente é a expansão da lei do mais forte. A natureza é impiedosa, seletiva, hierárquica, sem contemplações. Sempre me incomodou esta constatação da impiedade da natureza – a Criação de Deus – e a sua tendência darwiniana da seleção das espécies, onde os mais fracos vão sendo impiedosamente eliminados para que os mais fortes, mais adaptados, possam prosperar. Um exemplo claro? No processo de fecundação, dezenas de milhões de espermatozoides correm ao encontro do óvulo: só um lá entra, o que conseguiu correr mais veloz e, portanto, o mais forte. Todos os outros morrerão sem chegar a cumprir o seu objetivo. É assim a natureza.

No mundo dos humanos as coisas nem são tão diferentes. A história da humanidade é quase a história dos seus conflitos, batalhas e guerras, onde quase sempre venceu o mais forte. Em todos os campos da atividade humana esta lei do mais forte está presente. Da economia nem precisamos falar. Da Política o mesmo. E o mesmo a respeito das relações sociais e humanas, onde, mesmo no encontro entre duas pessoas, há sempre uma que domina a relação. Os “machos alfa” garantem o seu poder à custa seja do que for, tanto no mundo animal como no humano.

Talvez tenha sido por isso que o já referido Nietzsche afirmou que a moral cristã era uma moral de escravos, que tendia a levar o homem a asfixiar a vontade de poder que tem dentro de si e a renegar a própria natureza humana, que só se realiza no poder e no domínio.

Nos Evangelhos, por mais de setenta vezes Jesus alerta para não nos deixarmos tentar pelo poder, a sermos humildes, pobres, altruístas, a lavarmos os pés uns aos outros. Toda a mensagem de Jesus carrega em si o amor pelos mais fracos: excluídos, pobres, doentes, órfãos e viúvas.

Então quem tem razão? A natureza, criada por Deus Pai ou a mensagem cristã anunciada por Deus Filho? Constatamos que o mundo continua igual ou pior do que no tempo de Jesus e que a lei do mais forte está cada vez mais forte, mas continuamos a acreditar que o amor, que resgata os últimos, é a lei suprema. Leiam a “Lenda do Grande Inquisidor” inserida em “Os Irmãos Karamazov” de Dostoievski. Jesus ficou do lado dos fracos.

O nosso mundo divide-se então entre os que acreditam na força do amor, que tornaria todos os homens iguais, dignos, em que os mais débeis seriam o alvo desse amor, e os que constatam que a lei do mais forte não tem lá muitas exceções e que o mundo só pode ser melhor quando os melhores, os mais fortes, impuserem a sua lei, misericórdia à parte.

No meio de tudo isto, o mundo prepara-se para um ao difícil como os outros anos, este 2024 com a particularidade de cerca de 40 países irem às urnas eleitorais. A tendência dos últimos anos é a radicalização, com os eleitores a escolherem líderes robustos, agressivos, intolerantes e belicosos, desafiadores da antiga ordem que governou o mundo ocidental nos últimos 70 anos, que consideram corrompida. O maquiavelismo é genuíno nesse tipo de políticos e estadistas que não olham a meios para conseguir os fins, desde as “fake-news” aos ataques e ameaças pessoais, à mentira descarada e às ameaças da inteligência artificial que são quase infinitas. São as maiores ameaças à democracia, mas o que é a democracia senão uma liderança inventada para dar mais poder e igualdade aos mais fracos? O que é a democracia senão uma negação política da natural lei do mais forte? Os valores essenciais de uma democracia são o bem comum, a subsidiariedade e a participação, tudo valores sagrados para manter uma sociedade estável, sem grandes disparidades entre ricos e pobres, com atenção especial aos mais excluídos.

Talvez seja por isso que, nos Estados Unidos, terra mãe da democracia moderna e o seu grande baluarte no mundo atual, mais de 50% dos jovens já não acredita que a democracia seja a menos má forma de governação. Trump e todo o movimento gerado à sua volta são o protótipo de uma nova forma de fazer política – não assim tão nova se olharmos há 80, 90 anos atrás – em que um povo que sabe que tem o poder na mão, o entrega deliberadamente nas mãos de um caudilho protetor, que irá salvar o seu povo contra todos os inimigos, sobretudo os que não existem. A democracia é uma aventura que, por proclamar a liberdade, não está isenta de medos e inseguranças. É isso que o povo não quer. E por isso elege um líder poderoso, seja ele monstro ou não, mas que assume todos os medos do povo e o “liberta”. De quê? De medos inventados. Voltamos assim à lei do mais forte.

Sim. O nosso é um tempo de fracos, não no sentido acima referido mas no sentido de gente que inventou o medo para se proteger dele.

O primeiro parágrafo desta crónica está a tornar-se uma incómoda constatação. Dou um escudo a quem adivinhar o autor daquelas palavras.

*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.

 

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