Pelo padre José Júlio Rocha
Carlos da Maia, presumo eu, é que fumava “um pensativo cigarro”, na pena do incontornável Eça do Queirós. Esta figura de estilo que consiste em usar um adjetivo para transpor qualidades de um substantivo para outro tem o nome estranho de hipálage: não é o cigarro que é pensativo, mas o fumador. Queirós era exímio.
O Estêvão das Beiras também fumava, cara ligeiramente intumescida de quem não desdenha a pinga, cabelos negros e lisos, grandes, à moda dos anos setenta, oleosos e caídos, marrafa ao lado, uma madeixa longa a cortar-lhe a face na diagonal, quase por cima do olho esquerdo, fazia-me lembrar Fabrizio de Andrè, génio pop italiano, filósofo incomparável da música de intervenção. O cigarro de Estêvão não pensava: era maníaco-depressivo. Por vezes pagava pela ânsia de Estêvão, quando este se entusiasmava e, pobre cigarro, era vítima de inspirações violentas, a ponta a brilhar numa brasa vívida. Outras vezes permanecia esquecido, a escorregar entre os dedos do Estêvão, a cinza dependurada e a inclinar-se para baixo, enquanto um fiozinho de fumo dançante anunciava que o cigarro ainda existia.
Estêvão puxou uma baforada, deixou descansar o triste cigarro e declamou:
Ouviu-se um grito em Ramá,
uma lamentação e um grande pranto:
É Raquel que chora os seus filhos
e não quer ser consolada,
porque eles já não existem.
Conhecia a Bíblia, era um estudioso um pouco ou suficientemente heterodoxo para ir a muitas fontes, aos evangelhos apócrifos, a outras tradições, o homem tinha livros e lia-os. Olhou para mim, depois de declamar os versos com um olhar penetrante e sombrio: “Sabe, senhor padre, esta frase é do profeta Jeremias. Referia-se a Israel que, no norte, em Ramá, na Galileia, foi perseguido pelos Assírios e os seus filhos foram mortos. A Raquel que chora é a bela esposa de Jacob, mãe de alguns dos seus filhos, ume espécie de mãe de Israel. Os judeus acreditam que o túmulo de Raquel fica em Belém”. O cigarro a cair, a ponta de cinza a dobrar, um copo de bom tinto a passar-lhe pelos lábios: “São Mateus, no seu Evangelho, pega nesta frase de Jeremias e aplica-a à matança dos inocentes, mandada por Herodes, quando José, avisado por um anjo, fugiu para o Egito.” Fiquei admirado com a bagagem do Estêvão, algumas coisas que nem eu sabia.
Estêvão cruzou as pernas magras sob as calças de um verde-cinzento impecavelmente vincadas, peúgas pretas, sapatos quase a brilhar. Penteou a lustrada cabeleira com a mão esquerda e continuou: “Depois de amanhã, dia 28, senhor padre, celebram-se os Santos Inocentes. Quando Herodes percebeu que fora iludido pelos Magos, encheu-se de grande furor e mandou matar em Belém e no seu território todos os meninos de dois anos ou menos.” Caiu a cinza do cigarro em cima das calças e Estêvão, com um gesto displicente, sacudiu-a para o pátio molhado. “Aquela terra sempre foi regada com sangue. De quantas guerras fala a Bíblia? Quantas cruzadas levaram a guerra àquela Terra Santa? Hoje é mais do mesmo… Netanyahu é o Herodes de hoje! Digo-lhe isso sem mexer uma pálpebra!” Agitou-se e quem pagou foi o cigarro, vítima de uma aspiração mais violenta que o reduziu ao estatuto de beata. “Dois terços das 20 mil pessoas que morreram na Faixa de Gaza são mulheres e crianças e os vivos já nem comida têm. Não são melhores que o Hamas. O Hamas faz dos inocentes escudos humanos e os Israelitas atiram-lhes as bombas para cima. Quem faz pior?” Solenizou-se. Encostou-se dramaticamente às costas da cadeira, já o cigarro era um defunto no fundo do cinzeiro. “Cada choro daquelas mães e daqueles pais com os filhos mortos ao colo, cada criança que perde a vida é um grito de Raquel. E já agora, senhor padre, onde está Deus no meio de tudo isto? Já quando Herodes tinha mandado chacinar os bebés de Belém, onde estava Deus? A acompanhar o Seu filho para o Egito? Porque é que Deus permitiu um preço tão alto pelo resgate do Seu filhinho? Se calhar, as crianças de Belém também foram o escudo que Deus pôs à frente de Herodes para salvar a Sagrada Família…” Eu escutava com interesse as deambulações do pensativo Estêvão que entretanto, com um olho fechado e outro aberto, já aspirava, magnanimamente, a fumaça de mais um cigarro.
“Andam para aí a discutir quem é o mais responsável no meio disto tudo e os inocentes mortos, feridos, prisioneiros, sem casa nem comida nem saúde nem nada. Mete-me nervos, senhor padre, quando chamam o Hitler para a discussão, o Holocausto e todas essas coisas. Detesto quando confundem o povo judeu com o Estado de Israel. Uma coisa é um povo, o povo de Deus, que, ao longo da História foi um povo superior e vítima das maiores atrocidades, outra coisa é um estado, com um governo e, neste caso, um governo de extrema-direita, cheio de partidos ultraortodoxos e com um primeiro-ministro maníaco pela guerra.” Já o segundo cigarro ia a meio caminho, entre baforadas e longos períodos de descanso. Aventurei-me a dizer-lhe que Israel também tinha o direito a defender a sua terra e dignidade e que convinha ver que tudo começou com um ataque terrorista desumano. Sorriu como quem estava à espera. Aperaltou as costas e meneou a cabeça. Fixou o olhar no meu e a voz tornou-se mais funda, enquanto o cigarro esperava pacientemente: “Tudo tem uma causa, senhor padre, tudo. E eu não estou para aqui a dizer o que é que está certo ou o que é que não está. Só estou a dizer que o ódio não nasce de geração espontânea”.
E o cigarro apagou-se.
*Este texto foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rúbrica Rua do Palácio