Um dia, um dia diferente

 

Foto: Igreja Açores / José Cabral

Pelo padre José Júlio Rocha

É Natal

Os sinos estão tocando

Enquanto nos seus lares

Famílias vão rezando.

 

Chegava, então, a árvore de Natal a casa. Uma criptoméria nova, ramos ainda claros da juventude, a inundar tudo com aquele cheiro a infância. Montava-se a árvore com os caixotes que estavam no sótão e aquele sótão, aonde só o pai subia – porque era uma “falsa” – continha todos os mistérios passados da casa paterna: nenhum dos quatro filhos sabia bem o que se escondia naquele misterioso vazio por cima das nossas cabeças.

Bolas de vidro fininho, vindas de longe, nos sacos e caixotes do Padrinho da América, eram presas cuidadosamente nos ramos, sob o olhar superior da mãe. Lembro-me de uns conjuntos de dois sininhos vermelhos, sem badalos, enfeitados com uma espécie de lantejoulas, a refletir o brilho intermitente das luzes de Natal, dois conjuntos, algumas luzinhas fundidas, as fitas a descer pela árvore abaixo. À noite rezava-se e era a única quadra do ano em que nós rezávamos e cantávamos com vontade, de pé ou de joelhos diante da árvore, cada um segurando, à vez, o Amédio, o gato que se excitava abundantemente diante do tremeluzir das luzes e das bolas e das fitas e de tudo. Amédio foi o responsável pela destruição maciça de bolas de Natal.

 

É Natal

Alegram-se as crianças

O Pai Natal voltou

Com montes de lembranças.

 

Não havia Pai Natal. Havia, sim, um São Nicolau que acabou por vegetar sem graça num canto do quarto de jantar. As prendas, essas eram na “amassaria”, na cozinha, quase debaixo da chaminé, onde ponteavam quatro sapatinhos não muito novos, à espera do Menino Jesus. Esse era o momento mais difícil para os pais, à espera que nós dormíssemos e nós, nada, nós à espera do Menino Jesus, um som, um barulhinho, nada, e os pais à espera do silêncio para o Menino Jesus chegar. No outro dia, às seis ou sete da manhã, o Menino Jesus não tinha falhado.

 

É Natal

Jesus vem-nos dizer

Que só para perdoar

Vale a pena nascer.

 

Ó meu Menino Jesus, que vieste do norte, no seio de Maria, nascer em Belém da Cisjordânia, bem soubeste o que é não ter lugar onde nascer, ser um apátrida e migrante, não ter onde reclinar a cabeça e, mesmo assim, passar a vida a servir e a amar, ensina-nos, outra vez, o que é a paz. Nessa terra onde viveste, o ódio tem um preço bem tabelado, o ódio é cuidado com amor, com o amor com que uma mãe amamenta uma criança. Aí o ódio é respeitado, considerado, amado, o ódio é uma tábua de salvação. Corre sangue nas ruas, ó Menino Jesus. O sangue dos outros. Como é possível perdoar, quantas vezes terias ainda que morrer para que o perdão voltasse a ser semeado?

 

É Natal,

Nasceu o Deus Menino,

O mundo, que era grande,

Tornou-se pequenino.

 

Então montávamos o presépio, sabendo que todos os homens eram irmãos. Trazíamos as leivas do mato, húmidas e fofas, sabendo que Jesus era o Deus-Menino da Paz. Íamos buscar farelo de madeira com a certeza de que todos os homens se amavam e se queriam bem. Casinhas de papel, amorosamente recortadas, coladas, posicionadas, compunham uma aldeia, um mundo: entre as ovelhas e as vacas passeavam índios e cowboys de plástico, soldadinhos de chumbo, pastores e magos, elefantes e girafas, era o mundo inteiro, ali representado, a confluir para a gruta de Belém.

 

É Natal,

Ó Deus que me escutais

Fazei que os outros dias

Sejam todos Natais.

 

Amor e Morte não cabem no mesmo saco. Não gosto do soneto “Mors Amor” de Quental, não me juntem a Morte e o Amor. A Morte é o nada, o Amor é o tudo. Ou a Morte mata o Amor ou o Amor mata a Morte. O presépio é o início da morte da Morte. É o princípio do sentido da Vida: tudo está certo quando, numa manjedoura, abandonado e esquecido, nasce o Salvador do mundo. O Bem não faz barulho, o barulho não faz bem.

Feliz Natal.

*Este texto foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.

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