Stazione Trastevere

Regresso a uma estação de comboios antiga, pela qual passei muitas vezes e me fascina pelo seu anonimato.

Fascinam-me e intrigam-me esses edifícios duros, de grandes salas com vozes metálicas que anunciam partidas e chegadas; o movimento irregular dos transeuntes; as linhas infinitamente paralelas; os comboios que chegam e partem à sombra amarela das luzes do entardecer. Enquanto desço da carruagem que vai partir sem mim, alguém passa a tresandar a álcool e a noites mal dormidas. Estaca, levanta aos céus um punho e a voz e berra algumas frases que não consigo perceber. Continua o caminho, arrastando sapatos, roupas pesadas, corpo e alma. Ninguém olhou, ninguém reparou, ninguém viu.

Os lugares anónimos povoam-se de pessoas semiloucas, porque aí podem falar sem que ninguém os repreenda. Porque os outros, os que não se consideram nem loucos nem semi, calam-se, não olham para lugar nenhum, fazem uma pausa de existência quando têm que atravessar estações de comboios ou de metro.

E o homem sujo vai-se sumindo pela plataforma fora, a levantar, outra vez, o braço e a voz aos céus cinzentos de penumbra, quem sabe a dizer o quê… Apóstolo de um deus que se esqueceu dele. Encontro-o daí a pouco, nas arcadas exteriores da estação, a arrebanhar caixotes, a fazer a cama, ao pé de outros sem-abrigo, uma meia dúzia. Os sem-abrigo são como os loucos de Lisboa, onde os rios nascem no mar. Nós dormimos em lares, casas, quartos e camas, estruturas feitas para parar, descansar, dormir. Somos sedentários porque não andamos à procura de lugares onde dormir, mas são esses lugares onde dormir que estão à nossa espera. Um apartamento é um lugar onde se pode dormir. Uma estação é um lugar construído de propósito para se andar depressa: tem escadas, elevadores, táxis, plataformas e apeadeiros, horários, relógios, vozes metálicas de meninas simpáticas e virtuais, escadas rolantes. Nas estações, as pessoas só andam se não podem correr.

É aí que os sem-abrigo dormem. São sedentários nos lugares onde somos nómadas, dormem enquanto corremos, andam enquanto dormimos, falam quando não os escutamos, calam-se quando toda a gente fala. Às vezes julgo que aquilo a que chamamos loucura não passa de um lugar fora do seu lugar. Chamamos loucos aos que falam sozinhos, mas, à espera de um comboio, estão cem pessoas, cem bocas e duzentos ouvidos. E ninguém fala.

Os sem-abrigo são, julgo eu, acordes dissonantes numa orquestra que deixou de tocar. É difícil conviver com eles. Talvez porque sejam a nossa própria diferença, espécie não rara de doentes que sofrem de uma patologia chamada solidão. Talvez por isso seja melhor dormir aos pés dos que passam depressa do que numa cama, ao lado de absolutamente ninguém. As pessoas profundamente sós nunca estão sozinhas.

Há uma senhora de meia-idade, bonita, que me oferece o seu sorriso no meio dos caixotes e edredons onde está sentada. É nitidamente uma carta fora do baralho, quer pela postura nobre do rosto quer pela limpeza do seu cantinho. Tem uma bíblia gasta ao lado. Por momentos paro-me a pensar se não será alguém enfadado com a vida e que quis fazer uma experiência nova. Ou alguém com espírito tão missionário que quis experimentar na pele o que é ser sem-abrigo. Mas o mais provável é ser uma pessoa, como qualquer um de nós, que deixou de suportar a velocidade do tempo e a insustentabilidade dos dias agendados até ao fim dos tempos. Que se cansou de ter. Desde o ter uma cama até ao ter medo. Que, finalmente, descobriu que é mais viável parecer louco do que parecer que não o é. É que os outros, que dormem em camas e usam gravatas, fazem um esforço enorme para não parecerem loucos.

Nas arcadas daquela estação antiga, com uma bíblia quase a ser aberta, amanhã será mesmo como Deus quiser.

 

P.e Júlio Rocha

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