No meio de tanto enredo caseiro, onde as noticias e as não-notícias se confundem, como se tivessem o mesmo valor, os discursos do Papa Francisco no Parlamento Europeu e no Conselho da Europa passaram relativamente despercebidos nos media portugueses. E foi pena! Não só pela novidade do acontecimento, que já não se verificava há cerca de um quarto de século mas, sobretudo, pela assertividade, serenidade e coragem das palavras. Conhecedor da pobreza real que afeta 40% da população do Planeta, lá no outro lado do mundo, na “periferia” de onde vem, e ciente da pobreza que afeta o eurocentrismo europeu, assente na tecnocracia e no virtuoso mercado que tudo pode, Francisco ousou falar do “primado da pessoa”, enquanto expressão de uma inalienável “dignidade transcendente”. Enunciou que “persistem muitas situações em que os seres humanos são tratados como objetos, dos quais se pode programar a conceção, a configuração e a utilidade, podendo depois ser jogados fora quando já não servem porque se tornaram frágeis, doentes ou velhos”. E, exemplificou com uma das maiores vergonhas europeias- “Não se pode tolerar que o Mediterrâneo se torne um grande cemitério!”, criado à custa de vidas que apenas anseiam por um dia melhor, mais digno. Dignidade que significa, por outro lado, uma clara combinação entre direitos e deveres naquilo que eles contribuem para o bem comum de toda a sociedade, expresso numa notável síntese de apenas duas palavras: “Nós-todos”. O Papa Francisco sublinhou, ainda, os desafios e perigos de uma Europa com sinais evidentes de “fadiga e envelhecimento”, de uma “Europa avó que já não é fecunda nem vivaz”, submergida num “tecnicismo burocrático das suas instituições”. De uma Europa enleada numa atmosfera e debate políticos onde “o ser humano corre o risco de ser reduzido a mera engrenagem dum mecanismo que o trata como se fosse um bem de consumo a ser utilizado”. A esta Europa, Francisco contrapõe as virtudes da “riqueza da diversidade”, num continente mais rico e humanamente esperançoso, de acordo com “a unidade na diversidade” que fuja “às maneiras globalizantes de diluir a realidade: os purismos angélicos, os totalitarismos do relativo, os fundamentalismos a-históricos, os eticismos sem bondade, os intelectualismos sem sabedoria”. Francisco quer uma Europa “protagonista, portadora de ciência, de arte, de música, de valores humanos e também de fé” e disponibilizou a Santa Sé para ajudar nessa mudança. A mensagem económica, social e política do Papa é herdeira da doutrina social da Igreja, mas constitui, indiscutivelmente, uma rutura, que começa no simples facto deste Papa se querer fazer ver e ouvir. Quando Francisco lembra que“Tal como o mandamento ‘Não matarás’ impõe um limite claro para defender o valor da vida humana, hoje também temos de dizer ‘Tu não’ a uma economia de exclusão e desigualdade”, apela a uma obrigação social de que todos nos alheámos, deixando que as pessoas sejam tratadas como restos. Se calhar já basta. Por “Nós-todos”.