A minha religião é um pouco diferente da minha religião

Foto: Igreja Açores / José Cabral

Pelo Padre José Júlio Rocha

“O povo palestiniano tem estado sujeito a 56 anos de ocupação sufocante. Viu as suas terras serem constantemente devoradas por colonatos e assoladas pela violência; a sua economia sufocada; o seu povo deslocado e as suas casas demolidas. As suas esperanças de uma solução política para a sua situação têm vindo a desaparecer.” (António Guterres)

Estas palavras de António Guterres, proferidas numa reunião do Conselho de Segurança da ONU provocaram um alvoroço em Israel, mesmo se, antes delas, o Secretário-geral das Nações Unidas tenha condenado inequivocamente os horríveis e sem precedentes atos de terror de 7 de outubro, do Hamas, em Israel. “Nada pode justificar a morte deliberada, os ferimentos e o rapto de civis – ou o lançamento de rockets contra alvos civis”, afirmou.

António Guterres tem razão. Há 56 anos o povo palestiniano vive como ele descreveu. É uma evidência. Mas não é politicamente correto e Israel já exigiu a demissão do Secretário-Geral e suspendeu a emissão de vistos para funcionários das Nações Unidas.

Esta é uma guerra de ódios quase seculares. Sempre se disse que este médio oriente é um barril de pólvora, porque os ódios são pluridimensionais, fermentados por aquele que pode ser o mais perigoso de todos os ódios: o étnico-religioso.

Havia duas coisas a fazer: condenar, de todas as formas e em todas as circunstâncias, os ataques terroristas do Hamas. Considerá-lo uma organização terrorista e perseguir e neutralizar os radicais islâmicos, destruindo s suas bases, o seu poder e vencê-los. Acresce que o Hamas é também um partido que, em 2006, derrotou a Fatah e tomou conta do poder. Apoiado pelo Irão e outros inimigos de Israel, o Hamas tornou-se um monstro cancerígeno que afeta toda a Faixa de Gaza, tornando praticamente impossível individualizar os extremistas, quando grande parte da população se aliou a eles.

A outra coisa a fazer é impedir o bombardeamento massivo e indiscriminado de Israel à Faixa de Gaza, onde já morreram mais de duas mil crianças. Os “média” abundam em relatos pessoais de israelitas vítimas dos ataques terroristas do Hamas: testemunhos dos familiares dos reféns a chorar e a pedir a libertação; relatos arrepiantes sobre a forma bárbara como mataram crianças e outros inocentes nos kibutzes; lágrimas de israelitas que perderam os seus. Da Faixa de Gaza pouco sabemos para além dos gritos e lágrimas de homens e mulheres diante de ruínas e de mortos. Nada sabemos como morreram, como choraram ao morrer, as crianças da Faixa. E é ver todo um povo privado de água, alimentos, energia, cuidados de saúde e dignidade. Entretanto, o embaixador de Israel em Lisboa considera não haver problema humanitário em Gaza, como quem diz que são uma espécie sub-humana… A questão é que Israel tem sido governado por um bando de fanáticos religiosos liderados por Netanyahu, o guru corrupto cujos neurónios só pensam em guerra. Desde Camp David que Israel nunca mais quis saber de negociações com a Palestina. E esta radicalizou-se ao ponto de a maioria dos seus habitantes desejarem o terrorismo do Hamas.

O sonho de dois estados e uma capital, a eterna Jerusalém, estilhaça-se, com Israel estrangular os palestinianos e a maioria destes, provavelmente junto com a maioria dos muçulmanos, a desejarem a aniquilação do estado de Israel. Poucos são os inocentes, nenhuma a solução. É o que acontece quando a religião e o poder se aliam umbilicalmente, quando o poder das armas vai buscar as suas razões à religião e quando esta se justifica pela aniquilação dos outros poderes religiosos. É ali – mais do que em qualquer outro lugar – que a vingança escorre em nome de Alá misericordioso; é ali que em nome do Santo Deus de Israel se aniquilam os inimigos. Foi ali que os cristãos desembainharam as espadas nas cruzadas. Poder e domínio.

O meu Deus, quando por ali passou, foi diferente. Jesus não adotou nenhum dos esquemas de poder ou de política no Seu tempo. Criticou os fariseus, afastou-se dos saduceus, enfrentou os príncipes dos sacerdotes, discordou dos escribas, nem quis saber dos essénios, isto para falar do poder religioso. Quanto ao poder político e económico, converteu publicanos, desdenhou a riqueza, fugiu de Herodes, calou-se diante de Pilatos, rejeitou os “terroristas” zelotes, por mais de setenta vezes falou de serviço e humildade, deu-nos a Sua paz e, num dos gestos mais estranhos da Sua existência, mostrou todo o Seu poder lavando os pés aos discípulos. É a isso que chamamos paz.

A parábola do Bom Samaritano é talvez o culminar de um discurso desconcertante de Jesus, aquele que devemos, por força, aprender de uma vez por todas. É uma parábola profética para estes dias: um homem fica meio morto, vítima de salteadores. É israelita. Passam dois religiosos, sacerdote e levita, que se desviam da vítima. Passa, então, um samaritano (mais ou menos equivalente a uma palestiniano, hoje, naquela terra) e dá tudo para salvar a vítima. Ensinou-nos que, na Palestina como em qualquer lugar do mundo, quando o poder do amor for maior do que o amor pelo poder, então a guerra terá o destino que merece.

Falhámos, falhámos redondamente, falhámos a toda a linha e inventámos desculpas para justificar todos os atentados contra a mensagem de Jesus.

E vamos continuar a falhar. Porque Jesus identificou o poder com o serviço. E, aquando do Sermão da Montanha, proclamou bem-aventurados os que choram, os humildes, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os que promovem a paz e os que sofrem perseguição por amor da justiça.

A minha religião é um pouco diferente da minha religião…

*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio

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